sexta-feira, 1 de julho de 2011

Santo António já se acabou

Não há nada como acordar com o cabelo a cheirar a sardinha assada num quarto impregnado de odor a sangria.

As festividades referentes aos Santos Populares em Lisboa já lá vão há umas semanas e entretanto já acumulei uma série de episódios engraçados, merecedores de descrição detalhada e exaustiva, mas há que respeitar uma certa cronologia dos acontecimentos.

Nunca fui muito dada a multidões embriagadas, encontrões, chuvas de cerveja e música pimba (individual ou simultaneamente considerados) mas desde que fui a Pádova o ano passado em Agosto e trouxe comigo uma cruz de Santo António ao peito, benzida em plena Basílica, que Lhe guardo um certo carinho e reverência.

Não sei se por esse motivo (desconfio que não) este ano submeti-me a uma injecção de Santos Populares de tal ordem que até hoje acordo com o "Pai da Criança" no ouvido e um leve perfume de febra grelhada.

Digam o que disserem é um evento transversal na sociedade lisboeta: vêem-se todas as idades e todas as "classes sociais". Desdentados ou com nariz arrebitado, todos eles dançam ao som do "Mestre da Culinária", abanam as ancas temerariamente na esperança de encontrar espaço para uma pirueta condigna, enquanto cantam alegremente, sem enganar numa vírgula - toda a gente sabe a letra de cor.

Saltam mangericos e reco-recos, as flores, luzes, cores e enfeites de papel dão à cidade de Lisboa ainda mais cor e alegria, especialmente depois do sol se por. É como se o FMI nem existisse (panus et circensis, já dizia o outro). As ruelas de Alfama e os seus esconderijos fumarentos, a íngreme Bica com os seus páteozinhos improvisados, enchem-se de gente que dança, que bebe, que se abraça e que se ri numa felicidade contagiante. Este ano estive lá. Qual Rock in Rio! Os Santos é que é.

Encontram-se pessoas inesperadas, velhos amigos, novas coincidências e entre sorrisos e entremeadas, mais um pezinho de dança uma "mine" a acompanhar, emolduram-se saborosas lembranças que ficarão para sempre na parede da nossa memória.

A ver se compro um mangerico.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A culpa é das portas giratórias.

Não sei de quem foi a ideia peregrina mas Lisboa está infestada com portas giratórias. São uma autêntica praga, tão má ou pior ainda que os pombos raivosos que ameaçam vorazmente as estátuas centenárias da capital e as carecas mais distraídas. São verdadeiros snipers da imundice e das doenças infecto-contagiosas. Qual macacos qual quê, os pombos foram os verdadeiros mensageiros da SIDA. Mas adiante.

Espanta-me que ainda ninguém tenha tido a coragem de questionar a real utilidade desse pseudo-sintoma de modernidade. Diz que nos países de clima muito frio ou muito quente servem para isolar a temperatura dos edifícios. Ou então para dissuadir os larápios mais desesperados. Ladrão que se preze planeia uma fuga razoavelmente eficaz, especialmente se de arma em punho e apetrechado de valores, enquanto um alarme grita desesperadamente. Confrontado com uma porta giratória em plena correria escapatória, um pobre ladrão mais não pode fazer que aguardar pela "sua vez", hesitantemente (como se fosse para saltar à corda) e depois caminhar compassadamente em sentido circular até chegar finalmente à saída. Quando se libertasse desse calvário electro-mecânico já teria seguramente alguém fardado à sua espera.

Mas Lisboa está longe de ser uma cidade de climas extremos e os assaltos hoje em dia fazem-se pela internet (já não há criminosos como antigamente). Nada explica a proliferação dessas artimanhas enfadonhas.

São um verdadeiro convite ao acidente. Primeiro, aquela hesitação inicial - "será que é a minha vez? arrisco? se calhar dou uma corridinha" - depois de entrar (se formos suficientemente dinâmicos), passamos àquele andar de procissão sem Santo, muitas vezes esmagados entre desconhecidos, rezando que acabe tudo depressa, que ninguém nos pise, nem tropece, nem recue; finalmente quando se sai, há que ter cuidado para não ficar com o pé de trás entalado (as sacanas das portas são traiçoeiras).

Não estou a exagerar. Quem ainda não esbarrou com a testa chapada no vidro da frente por se ter antecipado à velocidade da rotação? Quem ainda não tropeçou enquanto caminhava placidamente entre portas e temeu pela sua vida face à possibilidade de ser albarroado inadvertidamente por trás? Quem ainda não ficou entalado? E preso? E ter de aturar conversas privadas de desconhecidos durante os cinco segundos mais longos da história? E frustrado por ter uma reunião dali a trinta segundos e estar impedido de dar passos largos sem partir um vidro ou pontapear alguém?

No início temia essas portas. Entrar sem me magoar e sair com vida era o meu objectivo. Hoje em dia não lhes tenho qualquer respeito. Até as empurro com as mãos se for necessário (sou capaz disso e de muito pior).

A quantidade gente que eu já pisei e as trombadas que já dei entre portas giratórias poderiam dar azo a indemnizações milionárias, vivesse eu nos Estados Unidos da América.  

Eu caminho depressa. Sempre caminhei. Caminhar devagar nunca me deu gozo algum, nem sequer a passear à beira-mar (mas que bela rima). Prefiro chegar o mais depressa possível ao destino, onde quer que seja, sentar-me e apreciar a vista. Nem para ver montras abrando. Ora, as portas giratórias são os antípodas deste conceito. E o pior é que parece que há pessoas que gostam da lenga-lenga rotativa. "Mais uma chapinha, mais uma voltinha". Quase que aposto que se pudessem ficavam horas e horas às voltas, tal é a alegria de entrar para o cilindro mágico. No fundo, é uma desculpa para não irem trabalhar, mais uns segundinhos a fazer tempo. Preguiçosos. As portas giratórias são um hino à preguiça. Por isso é que este País está no estado em que está.

Se há males na sociedade portuguesa são as portas giratórias. Acabem com elas.






sexta-feira, 27 de maio de 2011

Não preciso de muito.

Há dias entrei numa das mais antigas pastelarias de Lisboa para comprar tabaco. Faço sempre uma certa cerimónia quando entro numa pastelaria para comprar tabaco. É como pedir  um copo de água. Nunca me foi recusado (o tabaco, entenda-se, não tenho assim tanta lata), mas fico sempre com aquela sensação de que estou a abusar da boa vontade dos empregados. Não damos a ganhar nada à casa e ainda roubamos o precioso tempo do staff, que poderia estar a satisfazer os desejos requintados dos clientes gastadores e lucrativos.

Desde que inventaram aquelas máquinas de tabaco com comandos à distância ridículos a coisa ficou ainda mais absurda. É como se tivesse de pedir autorização ao "senhor do café" para fumar. E alguns ainda me dão aquele olhar do "tem a certeza?" Arre gaita, pois claro que tenho, aperte lá o botãozinho do comando, fachavor, para poder introduzir as moedinhas e exercer plenamente o meu livre arbítrio constitucionalmente protegido. Sem moralismos, já agora, que isso de ser moralista já está démodé.

Por este andar, qualquer dia é preciso uma declaração de idoneidade para comprar uma carteira de fósforos.

A máquina estava distante do balcão e eu desesperadamente procurava o contacto visual de um dos empregados, atarefados na sua lufa-lufa, sem me aproximar muito da montra farta de bolos, salgados, miniaturas e sandes de panado. Não querendo induzir ninguém em erro nas minhas reais intenções, mantive-me a meio caminho entre o tentador balcão e a dita máquina na esperança que fosse suficiente para ser entendida.

Levanto o braço envergonhadamente.

"Olhe, desculpe..."

Nada.

"Sai uma bica!"

Olho para o outro empregado como se precisasse verdadeiramente de um copo de água. Ninguém me iria deixar morrer à sede.

"Olhe, se faz favor..."

Contacto visual. Estava safa.

"Podia..."

E aponto com o polegar para a máquina que estava atrás de mim, assumindo que estava a ser inteiramente compreendida. Descansei quando vi o "senhor do café" a retirar o comando do prego onde se encontrava pendurado.

Fez-me um olhar poderoso.

"Podia mostrar-me o seu bilhete de identidade?"

Embasbaquei-me. Estava de fato e de facto embasbacada.

"Vá, desta vez passa..."



 
Não preciso de muito para sorrir.




segunda-feira, 16 de maio de 2011

Alto, que as galinhas estão para ter dentes.

Inscrevi-me num ginásio. Nunca pensei dizer esta frase sem me rir. Não sou desportista, não tenho qualquer talento para o músculo, não sou dada a dietas e é com grande amor e carinho que conservo desde criança o meu pneuzinho na barriga. Zelo com parcimónia a minha condição física e nunca fui muito além de umas aulinhas de ténis e umas corridas na praia.

O conceito de ginásio é-me um tanto ao quanto estranho. Estar entre quatro paredes a trabalhar o abdominal ou a correr roboticamente numa passadeira causa-me alguns arrepios. O tempo livre é, para mim, sinónimo de ar livre e estar confinada numa sala cheia de espelhos, pessoas obcecadas com o seu aspecto físico a prestar culto à figura nunca me permitiu encarar esta possibilidade com ligeireza.

Talvez seja o aproximar dos 30 ou a vida sedentária da qual sou voluntariamente refém, mas a necessidade de mexer o dito cujo obrigou-me a arranjar uma solução que, ao menos, não fosse incómoda ao meu horário laboral. E ficando a caminho do trabalho, melhor ainda.

Mas a principal motivação não tem nada a ver com gémeos torneados ou tríceps definidos. É tudo por causa do músculo do cérebro. De vez e quando, merece descanso, coitadito. Não muito, que é para não se habituar mal. A verdade é que enquanto a massazinha cinzenta anda entretida com os ritmos compassados do step, a tentar acompanhar desesperadamente a aceleração, garantindo que o corpo obedece cegamente ao "1! 2! 3! 4!" posso aproveitar para relaxar a maior parte dos neurónios (os que ainda restam), conservando actividade unicamente nos que me impedem de estatelar no meio do chão.

Antes de me inscrever deram-me a oportunidade de experimentar livremente todas as actividades que decorrem no ginásio, durante uma semana. Como boa portuguesa, naturalmente que aproveitei a borla e experimentei tudo o que consegui. Foi uma semana dolorosa, não houve um único músculo que não fizesse greve reivindicativa. Com alguma razão, há muito que o repouso era direito adquirido.

Comecei com uma aula de localizada. Ao fim de quinze minutos já nem sabia de que terra era. Foram quinze minutos extremamente relaxantes, do ponto de vista intelectual. Fui logo a seguir para uma aulinha de body pump, uma coisa levezinha, que mais não é que alterofilismo com música electrónica. O professor bem se esmifrou para tornar a aula interessante, mas não há grande volta a dar àquilo.

Alguns dias depois decidi ir à aula de dança clássica para adultos. Na minha ignorância, já me imaginava a dançar a valsa ou o fox trot em salões barrocos Europa fora. Quando chego à sala e vejo a professora de maiott percebi que a coisa estava mal parada. Era uma aula de ballet.

Desde os sete anos de idade que não fazia um plie em primeira posição. O curioso é que ainda me lembrava o que era. Fazer é que foi mais complicado: glúteos contraídos, omoplatas unidas, costelas para dentro, abdominais retraídos e quando dei por mim já mal conseguia respirar, quanto mais fazer um plie. Preparava-me para fazer a segunda posição quando a professora sugeriu que me descalçasse, dado que os ténis Reebok que tinha levado a pensar na valsa (não me ocorreu nada mais adequado) iam estragar a minha demi pointe. Tinha alguma razão.

Ao contrário do que esperava, adorei a aula. Não percebo nada daquilo, duvido que algum dia acerte uma única coreografia, jamais serei capaz de executar um arabesque, mas o certo é que apesar da minha total inaptidão para a delicadeza daqueles movimentos, a sua beleza conquistou-me. Há uma certa elevação do espírito naquela serenidade.


Só me falta é o traje adequado.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ainda há boas almas

Foi quando desci do autocarro em pleno Marquês de Pombal e, apressadamente, perscrutei com a ponta dos dedos a minha mala em busca do telemóvel (gesto que se tornou num hábito compulsivo nos últimos anos) que me apercebi que me faltava a carteira. Chamo "carteira" ao sumptuoso mono que arrasto comigo diariamente dentro da minha mala e onde guardo todos os meus preciosos cartões, papéis e talões de supermercado de há 3 anos atrás.

Entre a maralha de lixo de papel e plástico ainda há espaço para o bilhete de identidade, carta de condução, cartão de contribuinte e outras coisas enfadonhas mas absolutamente essenciais para provarmos a nossa identidade, morada, profissão e sabe Deus o que mais. Cartão do cidadão? Que é isso? Não quero ter nenhum Big Brother. Pelo menos até à próxima renovação do bilhete de identidade.

Dei por mim com as duas mãos dentro da mala e sem dedos suficientes para encontrar o meus precioso mono entre os restantes hóspedes que lá convivem caoticamente.

Pânico.

Cartão de crédito.

Duplo pânico.

De repente lembrei-me do que tinha ido fazer ao Marquês e porque procurava apressadamente o telemóvel. Tinha uma amiga à espera para almoçar. Enquanto caminhava atabalhoadamente rua fora na direcção do ponto de encontro, recapitulava todos os meus passos até então. Teria deixado o mono em casa? Não. Lembro-me do seu inefável peso na minha mala quando fechei a porta. Teria deixado cair no autocarro? Na rua? No trabalho? Ou terá sido um larápio que ma levou?

Cheguei ao pé da minha amiga afogueada e confusa. Já não a via desde a minha partida para Luanda.

Luanda.

Se houve coisa que aprendi em Luanda foi a "desproblematizar" os dramas e a "desdramatizar" os problemas. Depois do que se vê por lá, tudo é relativo.

Respirei fundo e concentrei-me no urgente. Liguei para o banco e cancelei o cartão de crédito. Quanto ao resto, já que tinha dinheiro para o almoço, optei por dar atenção à minha amiga e pôr a conversa em dia, razoavelmente conformada com a situação, que agora apenas requeria muita paciência nas filas de espera da loja do cidadão. O que me transtornava era a ideia de passar a pertencer ao obediente rebanho do cartão do cidadão. Raios!

Quando regressava do almoço, já imaginando a via sacra das segundas vias, toca o meu telemóvel. Era do meu antigo local de trabalho.

"Por acaso perdeu a carteira?"

OH abençoado lixo que guardo no meu mono. Entre os items absolutamente inúteis estava também um cartão de visita, com os meus antigos contactos de trabalho. Podem ser papeletas inúteis, mas são preciosas. Como as pedras.

Uma boa Alma encontrou a carteira no caixote do lixo e num acto de generosa benevolência teve o descernimento e a paciência de bisbilhotar os meus papelecos um por um e entrar em contacto para a única referência telefónica relacionada comigo que encontrou. Infelizmente também deve ter visto a foto da minha carta de condução.

E voilà! Dez minutos depois voltava à posse do meu estimado mono. Ainda me disponibilizei para retribuir o gesto, mas o simpático Senhor, já de alguma idade e com simplicidade nos modos e na indumentária apenas me disse:

"Não quero nada disso. Para a próxima tenha mais cuidado."






sábado, 2 de abril de 2011

Ode ao Bairro Alto

É uma presunção chamar-lhe Ode mas hoje não estou para grandes modéstias.

Já muitos deverão ter tido o prazer de ir beber um copo ao Bairro Alto. Poucos terão saboreado o fenómeno da experiência. Aconselho efusivamente, é o entretenimento mais enriquecedor que a vida me tem oferecido. E não é preciso fingir-se intelectual ou beber suminho para manter a argúcia, basta olhar à volta e apreciar, sem opulência nem constrangimento.

Quando se chega ao Camões, em vez da sobriedade conferida à Praça pela digníssima estátua, deparamo-nos com um cenário semelhante ao de um recinto de um qualquer festival de Verão em noite de estreia: magotes de gente, de todas as idades, agrupados como rebanhos, alguns segurando garrafas (de cerveja, vodka ou coca-cola), como se estivessem à espera de qualquer coisa que não estão preocupados que aconteça. E ainda são nove da noite.

Sobe-se a Rua das Gáveas, vira-se à esquerda, vira-se à direita, encontram-se os amigos, dá-se à perna mais uns metros e, já entre risadas perdidas no labirinto calcetado, entra-se num tasco qualquer para comer um bitoque com ovo a cavalo ou meia de jaquinzinhos com arroz de tomate malandro. Se formos de finuras, entra-se num restaurant aperaltado, à escolha em cada esquina, e experimenta-se (porque as doses, na maioria das vezes, só dão para experimentar) um magret de pato ou um entrecôte de novilho ou um souflé de camarão ou outra coisa qualquer, que apesar de sempre deliciosa, não consigo pronunciar (nunca fui grande coisa a francês). Às vezes também gosto de comer sofisticadamente, até porque desde criança que a minha Mãe me ensinou a usar todos os talheres, a colocar o guardanapo no colo e a limpar a boca depois de pousar o garfo e antes de beber (as vergonhas que isso já me poupou), mas ultimamente não tenho tido tempo. Não faz mal, não morro à fome por isso. Venha o bitoque.

Depois do repasto, seguimos em fileira entre o maranhal de gente que entretanto se acumulou nas ruas apertadas até à porta do bar do costume, que fica na esquina mais acima. Passa-se pela ginginha? Talvez não, que a ginginha zangou-se há uns tempos com o meu estômago e ainda não fizeram as pazes.

Até pode estar friozito (ou mesmo aquela chuvinha molha-parvos) que ninguém arreda pé do Bairro até fecharem todos os bares. Não consigo perceber porquê. Nem os meus Pais.

"Mas afinal o que é que vocês fazem enquanto lá estão?"

"Conversamos."

Desconfiam. Insistem.

"Mas na rua, em pé? Ouvem música? Dançam?"

"Não, estamos na rua a conversar."

E dão-se por vencidos, mas não convencidos.

A verdade é que aquele ambiente é magnético e vivificante. Correndo o risco de ser pirosa, sente-se uma espécie de calor humano e de proximidade com perfeitos desconhecidos, talvez para suprir a distância criada com as pessoas que trabalham connosco ou que vivem connosco. Solidariedade na distância.

Mas de facto, a única coisa que fazemos durante todas aquelas intermináveis horas, é conversar em pé na rua. Não há qualquer segredo, nada de obscuro se passa. Naturalmente que há por lá algumas discotecas, para onde se pode ir dançar e outras coisas parecidas, mas (para mim) isso já teve o seu tempo. O que eu gosto é de dizer disparates no meio da rua, entre amigos, soltar umas gargalhadas e exorcizar a semana de trabalho. Também se fala de coisas sérias - política, religião, crítica cinematográfica ou literária, viagens, concertos, músicas e episódios da vida. O que não pode faltar é o copo na mão. Bebe-se devagar, saboreia-se, beberica-se, mexe-se o gelo e quando se vê o fundo ao copo decide-se se há tempo para mais um.

Não sei como é que aguento estar tantas horas em pé, mas a verdade é que nem me dou conta do tempo a passar (excepto se levar saltos altos - erro que jurei nunca mais cometer). E estou certa que as centenas de pessoas que ecleticamente bebericam à minha volta também não estão preocupadas com o assunto.

Uns vêm beber uma imperial com os amigos. Outros bebem caipirinha (ou morangoska, que agora está na moda) para se esquecerem dos problemas da semana. Outros pedem um gin tónico para preparar o resto da noite. Os mais empeneirados (ou com um estômago mais sensível) bebem vinho a copo. No Inverno é o que sabe melhor.

"Qué flô?"

Também nunca falha. Às vezes, só pelo gozo, ofereço 1 euro pelo molho inteiro. Que me perdoem os senhores, mas não resisto. Então quando me espetam com aneizinhos a piscar e bonequinhos que guincham à parva, não escapam.

Chega a hora de abalar. Se ainda for cedo (uma da manhã) espera-me um demorado percurso, entre ombros, pisadelas, copos pelo ar e fumo de tabaco, até me libertar do labirinto de gente. É como se fosse uma dança - encolho a barriga ali, dou um saltinho acolá, desvio o ombro da cara de alguém e, como se fosse bailarina de dança moderna, chego ilesa ao destino.

Betos, góticos, alternativos, metaleiros, hippies, snobs, yuppies, executivos e outros sem estereotipo socialmente qualificado. Turistas de saltos altos assediadas pela calçada portuguesa. Cinquentões em busca do amor. Tipos encostados à parede por não terem chegado a tempo à casa de banho. Miúdos a pensar que já têm idade para isto. Casais enamorados a partilhar uma tosta (ou uma bola de berlim com creme). Estamos todos ali. Não nos conhecemos, não nos compreendemos, não nos aceitamos. Mas estamos todos ali, a fazer exactamente o mesmo, à porta dos mesmos bares, das mesmas casas de fado, a ouvir ao longe a mesma música dos anos 60, 70, 80, 90 e qualquer-coisa-enta, ritmos latinos, jazz, sons africanos (ou africanizados), batuques indecifráveis.

Cruzo-me com todo o tipo de pessoas, passo por todo o tipo de bares, ouço todo o tipo de música. A Babilónia à noite devia ser assim.

Com sorte, já estão a cozer pão com chouriço na Rua da Rosa. Já agora levo uns croissants para o pequeno almoço.



sábado, 26 de março de 2011

O que ainda não tinha contado

A minha estadia em Luanda foi inaugurada com um episódio memorável. Houve muitos, a maior parte já exaustivamente relatados por estas bandas. Mas este específico episódio manteve-se oculto da blogosfera até hoje para impedir sobressaltos por quem me seguia ao longe. E para impedir que os meus Pais enviassem uma comitiva de resgate em minha busca, criando um incidente diplomático. Não tenho dúvidas que se barricariam na Embaixada de Angola em Lisboa até serem ouvidos por José Eduardo dos Santos e o convencerem a mandar as suas tropas de elite para me resgatarem. E ai de alguém que se metesse no caminho.

Como Portugal já se encontra, neste momento, a braços com a sua própria sobrevivência, achei melhor evitar o constrangimento internacional e optei por lhes contar só no dia do meu regresso, sã e salva.

No dia seguinte à minha chegada, depois de um inesperado convite para participar num alambamento (uma espécie de festa de noivado), resolvemos dar um pezinho de dança numa discoteca próxima.

Estava acompanhada por mais duas moças e um cavalheiro, o condutor, que nos aconselhou a deixar as malas no carro. Apenas uma de nós foi inteligente o suficiente para o fazer. Naturalmente que não fui eu, que precisava da mala para guardar o tabaco.

Estacionado o carro quase à entrada de um musseque e já a caminho da discoteca, a poucos metros do veiculo, o cavalheiro teve que regressar ao dito para ir buscar o telemóvel, do qual se havia esquecido.

Ficámos as três à espera que o cavalheiro regressasse, animadamente tagarelando, quando calmamente se aproximaram dois indivíduos que, interrompendo as nossas gargalhadas (sacanas!), agarraram a minha bolsa (que trazia à tiracolo) e com três esticões - talvez mais, não sei ao certo - conseguiram separá-la da alça que a prendia ao meu ombro. O insitinto impeliu-me a resisitir, mas a minha argumentação ("Não! Não Não!") foi pouco convincente.

Ao mesmo tempo, uma das outras moças, que também trazia uma pequena malinha à tiracolo, foi brindada com a mesma sorte, mas no meio da confusão caiu ao chão e acabou descalça. Agarrou no sapato e ainda correu alguns metros atrás dos indivíduos, convencida que os demovia com uma sandália na mão, e só parou quando eles se enfiaram no meio do musseque, por uma rua estreita e sem luz. Ali uma sandália não lhe valeria de muito.

A outra moça gritava por socorro ao cavalheiro que imediatamente veio a correr.

EPÁ! NÃO FAÇAM ISSO!! NÃO FAÇAM ISSO!

Mais um bocadinho e quase os convencia. Acho que até os vi hesitar.

Nunca mais os vimos. Nem às malas. A sorte é que nenhuma de nós levava documentos. O chato foi que fiquei sem chave para entrar em casa. E o que vale é que estava rodeada por pessoas generosas que me acolheram no seu lar, sem me conhecerem de lado nenhum. Pessoas que hoje têm em mim uma amiga.

Podia ter acontecido em qualquer parte do mundo. O assustador no meio desta história toda é que, em Luanda, não há ninguém a quem se possa recorrer nestas situações. E isso não acontece em qualquer parte do mundo.




Dedicado a todas as minhas amigas chamadas Inês

Não sei porquê, mas a vida cercou-me de Inês(es). E em Luanda também vêm em lata.


É um produto genial das "Conservas Portugal Norte - Lda.". Ainda não vi à venda em Lisboa, mas se houver vai resolver-me muitos problemas pelo Natal. Ainda bem que todas as minhas amigas chamadas Inês gostam de atum.




terça-feira, 22 de março de 2011

Resquícios

Andei nos últimos dias a pensar se haveria de dar continuação a esta coisa. Agora que se foi a inspiração africana, agora que deixei um pedacito de mim por terras vermelhas e trago um pedacito de terra vermelha comigo, valerá a pena insistir neste ego-blog? O problema é que o dedo já ganhou gosto à tecla e aquele sentimento de convicção de obrigatoriedade já invadiu a minha consciência. Estou para me decidir.

O regresso, seja de onde for, é sempre difícil. Pelo menos para quem parte com Alma. Há sempre histórias inacabadas, há sempre aventuras por acontecer, há sempre sítios a que não fomos e há sempre gente que fica lá.

Há quem diga que é mais difícil para quem fica. Talvez. Mas a vida também não é fácil para quem parte. Especialmente se estiver frio à chegada. Valha-me a botija de água quente.

Lá voltei a apanhar o autocarro para o trabalho e enquanto subia para o moderno veículo cor-de-laranja arrependi-me amargamente nunca ter andado de candongueiro, o azul e duvidoso transporte colectivo mais utilizado em Luanda. Durante dois meses vi-os a passar ao meu lado (por vezes demasiado perto, quase levei uma lambada do retrovisor na cara) e nunca tive a coragem de lá entrar.

"Aeroporto, aeroporto!"

Era o destino. Nunca mais me vou esquecer deste pregão. O motorista, com a cabeça de fora e o braço esquerdo a espancar vigorosamente a porta daquela lata velha para anunciar a chegada e o percurso. Do outro lado, o "co-piloto" fazia o mesmo.

Haveria certamente outros destinos, mas este foi o único que ouvi.

Mais uma aventura por acontecer, seguramente, com muitas histórias inacabadas.

Entro no edifício. Habituada à boa disposição das gentes de Luanda, arrisco um sonante

BOM DIA

A resposta foi



qualquer coisa que não percebi. Se calhar nem era para mim.

Lar, doce lar.

E vêm-me à memória imagens como estas



"As cascatas" (deixo à imaginação de cada um perceber porquê)





"Luanda vista da Ilha"




 O Candongueiro (este era dos novos - um verdadeiro luxo)




O Banco Nacional de Angola 




O início da marginal




Nada. Ou vá, qualquer coisa.




As vistas do quotidiano.


Nem tudo era maravilhoso. Mas também não tinha que ser.







quarta-feira, 16 de março de 2011

O Regresso

Às 6h20 da manhã, com pouco mais de hora e meia de sono, arrastei a minha mala com quase 30 kg até à entrada de casa, onde o Sr. Mendonça me esperava (há cerca de meia hora) com o seu habitual sorriso e boa disposição para a minha última viagem nas ruas de Luanda.

"Desculpe o atraso, Sr. Mendonça."

"Não tem problema... Tive de vir mais cedo por causa do trânsito."

Boa gente, o Sr. Mendonça.

Despedi-me mentalmente dos musseques que avistava, das zungueiras, do Bairro do Prenda onde comi funge, do trânsito, dos buracos, do calor, da Cuca e da música que se ouvia na rua. O sono impediu um sentimentalismo mais profundo, daquele que se sente nos olhos. E ainda bem.

Chegada ao aeroporto, dirigi-me ao guichet da companhia aérea para fazer o drop off (abençoado check in online, não fosse isso ainda hoje estava na fila).

"A mala pesa 28 kg, tem que pagar o extra."

"Não me faça isso... eu tiro algum peso"

Retirei um par de sapatos que miraculosamente couberam na mala de mão e o gel duche de quase 2 litros, o qual estava disposta a oferecer ao cumpridor funcionário.

Voltei a colocar a mala no tapete. Pesava 26,5 kg.

Exibi o gel duche ao funcionário na esperança de que o aceitasse como gasosa. Estava meio cheio, mas nunca se sabe.

"É isto que está a fazer diferença?" Abanou o recipiente desconfiado e hesitante. "Pode voltar a pô-lo na mala." Um estalo de luva branca, literalmente.

Agradeci vigorosamente e observei, aliviada, a minha mala (coitada, mais parecia um ovo gigante) a seguir caminho tapete fora. Não sei como consigo sempre viajar com excesso de peso à borla. Deve ser porque sou alta.

Decidi fumar um último cigarro em Luanda e procurava o maço de tabaco na minha gigante mala de mão, com sapatos à mistura, quando de repente ouvi o meu nome em tom de interrogação.

Ao levantar a cabeça deparei-me com uma elegante moça, solenemente fardada, a sorrir-me com espanto e contentamento. Não duvidei por um segundo de quem seria, mesmo com farda de comandante. Foram muitos anos a partilhar a mesma sala de aula, o mesmo recreio, o mesmo elástico de saltar, as mesmas brincadeiras e as mesmas zaragatas. Tinham passado mais de dez anos desde a última vez que nos vimos, mas há pessoas que não se esquecem.

Dirigi-me a ela, retribuindo a surpresa e alegria do reencontro e não demorou muito para perceber que íamos no mesmo vôo.

"Depois vou lá dar-te um beijinho."

Já sentada no avião, um simpático comissário de bordo aproximou-se.

"Gostava que me acompanhasse. Traga as suas coisas... é que vai ficar sentada lá à frente."

Confesso que precisei de alguns segundos para perceber que "lá à frente" era a classe executiva. Escondi o meu contentamento infantil o mais que podia. Não sei se consegui. Só me faltou bater palminhas.

"O Comandante chamou-a ao cockpit para assistir à descolagem."

Tive a sensação de ter regressado à meninice e que me tinham acabado de dar um balde de Legos. Ou o último set da Playmobil. Nunca fui muito dada a bonecas.

E entre milhares de botões, alavancas, ecrans, coordenadas e linguagem que a mim me pareceu imperceptível - mas estou certa que só a mim - tive o maravilhoso privilégio de assistir à descolagem da imponente aeronave que transportava cerca de 150 passageiros para Lisboa.

A quem tem medo de andar de avião posso assegurar: eles sabem o que estão a fazer. Palavra.

Às tantas ganhei coragem e perguntei ao Comandante qual teria sido a experiência mais assustadora.

"Uma vez no Brasil quase estive para abortar a descolagem porque o peso do avião excedia em muitas toneladas o permitido. Mas depois lá consegui, em segurança, naturalmente."

Jurei a mim mesma nunca mais viajar com excesso de peso. Em silêncio, para não ferir susceptibilidades.

Havia muita conversa para pôr em dia, mas optei por não atrapalhar a navegação e confesso que estava com alguma ansiedade para experienciar, pela primeira vez, uma viagem "à executiva". Pode soar a piroseira, mas é verdade. Além disso, tive o convite para regressar mais tarde.

Mal me sentei não resisti à tentação de brincar freneticamente com o botãozinho de levantar e estender a cadeira, só pela graça de me sentar e deitar mexendo apenas um dedo.

"Djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj"

Parei quando o passageiro do lado olhou para mim como se fosse uma extra-terrestre. Depois diverti-me com os botões da televisão, que ao menos era mais discreto.

Em executiva enchem-nos com mimos. E dão-nos talheres a sério, daqueles que antigamente toda a gente levava para recordação.

"Deseja um aperitivo?" "Prefere sopa ou entrada fria?" "Posso oferecer-lhe um chocolate?"

De barriguinha cheia, estendi a cadeira até ficar completamente horizontal e dormi o sono dos justos até à altura da aterragem (ou, tecnicamente, da "aproximação"), altura em que regressei ao cockpit.

A aproximação correu pacificamente e orgulhosa assisti à brilhante execução da minha amiga. Bravo.

Desfiz-me em agradecimentos, trocámos números de telefone e ficou a promessa de um reencontro.

O regresso não podia ter sido mais triunfal. O contraste de realidades foi chocante. Ao menos tinha os meus Pais à espera para afogar as saudades, com gerberas e tudo. Aí já não consegui evitar o sentimentalismo mais profundo.










segunda-feira, 14 de março de 2011

Luanda chora porque me vou embora.

O momento requer um tanto de solenidade e lamechice. Vou regressar a casa daqui a umas horas e as despedidas sabem-me sempre a pouco.

Ontem fiz questão de dizer um até já às pessoas e aos locais que me vão deixar mais saudades. O plano era simples: jantar-petiscada e um pezinho de dança na primeira discoteca a que fui em Luanda: o Eden.

Mas a imprevisibilidade de Luanda arrasa qualquer plano, por muito simples que seja. O jantar-petiscada correu maravilhosamente, no restaurante "Palhota", entre quitetas, leitão assado (da Bairrada!), choco frito (tão bom ou melhor que o de Setúbal), chouriço picante, tudo com batatinhas fritas a acompanhar.

Estavamos sentados na esplanada, coberta com uns chapéus de sol e uns toldos  improvisados, quando o primeito clarão iluminou os céus.

"Será que vai chover?"

Não demorou muito para saber a resposta. O dilúvio foi de tal ordem que não houve toldo nem chapéu que não cedesse.

"Salvem-se as quitetas e o choco!" Essa era a prioridade.

Lá nos conseguimos encolher todos nos espacinhos minimamente secos, depois de uma ciranda de cadeiras, mesas, travessas, talheres e copos. Sem maka, que vieram mais quitetas e choco.

Passava pouco da meia noite quando arrancámos para o Eden. O dilúvio tinha acalmado, mas a chuva continuava a dar o ar de sua graça.

"Ainda não abriu".

Começa bem. Ficar à chuva não era opção (ainda) e em Luanda não há propriamente barzinhos para drinks ou, como dizem os mexicanos, para pre-copar. Apelo desde já à comunidade internacional (ONG's incluídas) para suprimirem esta enorme falha na noite Luandense.

Por outro lado, há discotecas como se não houvesse amanhã. Um pouco menos Afro, a discoteca Miami era mesmo ali ao lado (que é como quem diz 15 minutos a pé), embora não seja muito pródiga em música angolana. Tinha esperança que naquela noite fugisse à regra.

"Está fechado".

Fazia sentido, dado que é uma discoteca praticamente toda ao ar livre e o sítio estava "indançável".

Foi aí que a chuva ceifou as minhas expectativas de acabar a noite ao som de kizomba. Luanda chorava.

Avançámos para o Lokal, outra discoteca, essa sim, literalmente mesmo ali ao lado. Também não era coberta, o que acabou por revelar-se bastante positivo. É que dançar à chuva, como um calor dos diabos, ao som da música "This time for Africa" foi verdadeiramente arrepiante. Nunca mais menosprezo a Shakira.

Luanda ensopou-me. Fosse em Lisboa já tinha apanhado uma pneumonia ou, quem sabe, gripe A. Como aqui não há dessas coisas finas de gripes com letras, além de que o calor fazia eveporar todas as gotículas que caíam, sentir aquela chuvinha  quente até deu mais emoção à despedida.

Foi o verdadeiro Dancing in the rain.

Dois meses depois de ter chegado continuo a ser surpreendida por esta cidade.

Sei que irei perder muitas mais surpresas.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Pequenas coisas do quotidiano em Luanda - Parte IV

O Suor

Estou para escrever sobre este tema desde que saí porta fora do avião, pela primeira vez, no Aeroporto Internacional de 4 de Fevereiro. O pudor e a etiqueta têm-me impedido de ousar dissertar sobre as vicissitudes que a temperatura constantemente elevada provoca nas glândulas sudoríparas. Tentarei ser o mais delicada possível, mas há coisas que têm de ser ditas, não vá alguém ao engano.

Aqui sua-se. Não é preciso muito, basta não haver ar condicionado. Ou melhor, basta o ar condicionado estar regulado acima dos 23ºC. E mesmo assim, não é certo. Sua-se em casa, na rua, nos restaurantes, nas repartições públicas, nos supermercados, nos carros, na praia e à sombra. No início, confesso, é assaz incomodativo. Mas não demora muito até integrar naturalmente o nosso quotidiano.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Estou certa que não era à Coca Cola que Fernando Pessoa se referia quando se lembrou desta brilhante tirada. Referia-se, sim, ao suor que se fazia sentir nas Colónias Ultramarinas (ou para ser politicamente mais correcta, nas Províncias). Interpretaram-no mal. Nunca teve muita sorte, coitado. Até hoje ninguém percebeu muito bem o que ele queria dizer. Já o Álvaro de Campos era cristalino.

Come chocolates, pequena...

Devaneios à parte, nem os três frascos de desodorizante que trouxe de Lisboa me safaram. Dove Invisible Dry 24h. Pois sim. Nem invisível, nem seca, nem 24 horas. Com sorte, nos primeiros 10 segundos depois do banho. Um grandecíssimo embuste, um típico caso de publicidade enganosa, sem pôr nem tirar. Ao menos poderiam ressalvar que o produto só é aplicável em climas distantes do Equador. Dove Invisible Dry 24h 2000000 miles away from the Equator. É que não foi uma nem duas vezes que tive de mudar de roupa a meio do dia. A sorte é que se lavo roupa à tarde, à noite já está seca.

Mas com as minhas vicissitudes sudoríparas posso eu bem (nem tive outro remédio). Já as vicissitudes sudoríparas dos outros são mais difíceis de suportar. Especialmente em elevadores. 

Ai Pessoa, se tu soubesses...








terça-feira, 8 de março de 2011

Finalmente, o Mussulo.

Parece que não, mas já vai para dois meses que pousei meu alvo pé nesta terra vermelha. Ligeiramente mais bronzeado, o meu pé já calcou muita areia e muito asfalto e teve há dias o prazer de se enterrar nas areias do Mussulo.

A viagem para o Mussulo faz-se de barco. Não é um barco qualquer, como aquele que atravessa placidamente o Tejo, desde Alcântara até Cacilhas, nem é comparável à empáfia da Baltic Princess que navega entre Helsínquia e Tallinn. Este tem muito mais charme. É uma lancha de madeira rusticamente pintada, 5 X 2, apetrechada com um valente motor Yamaha, onde os passageiros (bem apertadinhos, cabem pelo menos 10) se sentam confortavelmente em tábuas atravessadas (algumas, inclusive, almofadadas) e arranca pululando temerariamente entre as ondas até ao desejado destino. O que vale é que nos dão coletes, não vá alguém entusiasmar-se.

O preço da viagem é negociado antes do início do trajecto e o valor varia, secretamente, consoante a nacionalidade dos passageiros. Os pulas pagam o dobro. Os pulas "mangolê" lá conseguem um desconto.

"Tito, dá-me o teu número de telemóvel para depois nos vires buscar".

E com um pé na água lá entrámos para a lancha, mais as sacolas, as toalhas e a geleira, onde levávamos um digno mata-bicho. É que no Mussulo só há um restaurante-bar, que por sinal é o único que disponibiliza, mediante o pagamento de módica quantia, chapéus de palha e colchões aos veraneantes. É um verdadeiro monopólio.

Viagem sem makas.

Desembarcámos perto do restaurante, prontos para abancar por baixo de uma dos chapeuzinhos de palha já que às 10h da manhã o sol não estava para cerimónias.

"O aluguer são 1000 kwanzas, mas tem que entregar a geleira, que o chefe não deixa."

Ora gaita. Não podiamos ficar sem o mata-bicho.

"Então deixe estar que vamos para outro sítio"

E orgulhosamente arrastámos as sacolas, as toalhas e a amada geleira para outra ponta da praia. Não demorou muito tempo para percebermos que sem sombra a coisa ia correr muito mal.

Improvisámos. Ou, à boa maneira portuguesa, desenrascámo-nos.




Entre muitos banhos, muito protector e muita água tónica, lá iamos gozando a paisagem magnífica que nos cercava.

Ao longe avistava-se a sombra fresca de umas palmeiras que rodeavam uns bungallows. Dava ares de pertencer a terceiros. Mas não havia vedação, apenas uma pontezinha de madeira que convidava à passagem. Que desperdício, aquela sombra sem ninguém para aproveitar.




"Bora?"

"Bora".

E passámos o resto da tarde a admirar este espectáculo.








Degustado o mata-bicho, lá nos rendemos ao único restaurante-bar do Mussulo, onde acabámos por encerrar o dia de praia.

 


"Tito, podes vir buscar-nos?"

O Tito não apareceu. O que vale é que Titos há muitos.

Ter dias assim deveria ser um direito inalienável de cada cidadão, constitucionalmente protegido.










sábado, 5 de março de 2011

Bob Da Rage Sense

Sempre tive uma paixãozinha oculta por hip hop. Nada de muito assolapado. Uma coisa de vai e vem. Gosto da batida e das rimas e da paixão com que uma frase é atabalhoadamente comprimida ao ritmo da música, independentemente do comprimento. Estica-se uma sílaba, encolhe-se a outra, os ditongos são quando um homem quiser, e cá vai disto. No fim acaba-se sempre por abanar a cabeça e sentir as palavras que, regra geral, requerem revolução. É um apelo ao pequeno intervencionista que existe em cada um de nós (e quem o negar é mentiroso) e que volta e meia lá dá sinais de vida. 

"'Bora ao concerto do Bob da Rage Sense no Cineteatro?"

"'Bora."

Não era eu que ia perder um concerto do artista do momento, cuja existência desconhecia em absoluto até à data. Para além de que ir ouvir "hip hop" num "cineteatro" tinha qualquer coisa de místico. E de improvável. O suficiente para me despertar a curiosidade.

A fachada do Cineteatro de Luanda tem a imponência da palavra. É uma espécie de réplica daquilo que talvez tenha sido um Cineteatro helénico. Com direito a colunas altas e fronte (penso eu) de pedra, onde estavam talhadas algumas personagens da mitologia greco-romana. Ainda consegui distinguir Neptuno, graças ao Tridente.

Mal chegámos, percebi que o evento era de dimensão consideravelmente razoável face ao tamanho do anfiteatro (não me quero enganar mas talvez seja comparável ao Politeama, só que ao ar livre) e ao número de pessoas que lá se encontravam (talvez mais de 500). Mulheres? Umas dez. Brancas? Três. E eu só conhecia uma delas.

Tenho a dizer que esse facto não me fez sentir minimamente desconfortável, nem observada. Vá, talvez ligeiramente observada, mas com aquele tom de curiosidade e uma pitada de condescendência que uma pessoa sente quando vai overdressed para uma festa na praia.

Antes de o Bob entrar em cena, actuou um número interminável de artistas angolanos de hip hop, cujos nomes, confesso, não fui capaz de memorizar. Mas deu para perceber que Angola não é so kizomba.

Gostei de ouvir o Bob. Gostei mesmo. As letras são inteligentes, revelam cultura, mostram paixão e têm mensagem. Só espero é que essa mensagem não seja mal interpretada.





O publico sabia este refrão de cor. E a verdade é que fica no ouvido.

Foi um concerto bastante tranquilo, com constantes mensagens de paz e apelo à serenidade.  

"Paz, meu irmão. Sê inteligente na tua luta."

Já no final do concerto, duas branquelas juntaram-se à multidão que esbracejava ritmadamente ao pé do palco. Tiraram fotos e tudo. Doidas.

Paz Bob! Paz Angola!
 



terça-feira, 1 de março de 2011

Madrinha, quer Marlboro?

Não conheço nenhuma tabacaria em Luanda. O tabaco vende-se na rua, misturado com papaias, ananases, maçãs, laranjas, banana-pão e outras frutas que não consigo identificar (por ignorância frutícula), óculos de sol, produtos de manicure (das mais variadas proveniências), artesanato, cartões de recarga para telemóvel,  bébés de fralda a dormir em cima de panos, peixe seco, pilhas e sei lá eu mais o quê. Digamos que o comércio tradicional em Luanda faria as delícias da ASAE. E da comissão de protecção de menores também.

Se há coisa boa de ser fumadora em Luanda é que o tabaco aqui é uma real pechincha. Compra-se Marlboro a 200 kwanzas (mais ou menos 1,5 €) e já é carote. A coisa má é que não se vende o meu tabaco de eleição - Marlboro 100's. Quem me conhece sabe de cor e salteado que me recuso a dar um cêntimo por outro tabaco que não seja Marlboro 100's (já que me estou a matar, ao menos que seja com gosto e com classe). No entanto, não tive grande alternativa para suprir o meu vício que, diga-se, reduziu consideravelmente, graças à humidade e à poeira constante no ar que satisfazem parcialmente os meus alvéolos sedentos de nicotina. Ainda assim, não é desta que deixo de fumar. Chegará o dia.

Todos os dias de manhã, ao descer a rua, passo pelos moços que vendem tabaco importado (ou outra figura jurídica semelhante) de África do Sul, simetricamente organizado em dois caixotes de cartão sem tampa. Bastou comprar-lhes, por duas vezes, um Marlborozito (nome carinhoso que dou ao primo pobre do Marlboro 100's) para me ficarem a conhecer a preferência. Ou então lembram-se de mim por ser alta.

"Madrinha, quer Marlboro?"

 E foi assim que arranjei os meus personal dealers em menos de nada.

Ainda ontem me fiaram o tabaco.

"Não tenho troco Madrinha, paga amanhã."

Em Lisboa não se arranja disto.





sábado, 26 de fevereiro de 2011

Luanda - Benguela: a Odisseia - Parte IV

Domingo, 20 de Fevereiro:

Acordar às 8h30 da manhã não qualifica como "acordar com as galinhas" (aliás, em África, a essa hora, já o Sol é de meio-dia) mas graças às poucas horas de sono foi essa a sensação quando me levantei da cama. Não quer dizer que me tenha custado muito, antes pelo contrário. A adrenalina de estar em latitude e longitude desconhecidas vencem qualquer João Pestana.

O plano era rumar cedo à Baía Azul (praia situada a alguns quilómetros de Benguela). Enquanto uns finalizavam os preparativos para umas horinhas de lazer ao sol, outros (preguiçosos, como eu) foram dar uma voltinha a pé pelas ruas da cidade. O calor era verdadeiramente abrazador mas esta altura do campeonato não há calor que me demova.

Benguela é uma cidade catita. Mais que catita, é doce. É uma cidade doce. Eu, gulosa que sou, só me apetecia continuar por lá a lambuzar-me com as ruas largas, palmeiras gigantes, casas coloniais, cafés com esplanadas, vista para o mar e gente simpática. 

No regresso a casa, para cortar caminho, passámos rés-vés ao petit musseque que nasceu perto do centro. Vimos gente descontraída a conversar ao som de música africana, partilhando estendais e tachos, com as portas de suas casas escancaradas, como se não houvesse nada a esconder. Ou a guardar.

Talvez quem não tenha nada a esconder nem a guardar seja verdadeiramente feliz.

"Já estamos prontos!".

Chegámos à Baía Azul pouco depois das 11h00. Chovia. Palavra que chovia. Não sou uma pessoa derrotista mas já estava a pensar que aquilo era azar a mais. Sete horas de espera no aeroporto para apanhar chuva é muito azar. Irra!

Mas nem a chuva manchou a beleza da praia








"No Lobito não está a chover!"

E não estava. Foi então que tudo valeu a pena.









Se pudesse embrulhar a Restinga e levá-la comigo pagaria qualquer preço. Na verdade, se calhar até levo. E de graça.

O regresso foi pacífico. O vôo só se atrasou uma hora.