quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O guarda-chuva

Hoje apanhei uma daquelas molhas à antiga. Resolvi ir a pé para o comboio, para desenjoar do autocarro, e já pingava aquela chuvinha molha-parvos quando saí porta fora. Ainda são uns bons dez minutos de minha casa à estação, mas tinha vestido um impermeável, levava um chapéu de abas (também ele próprio para a chuva) e  confiante, olhei para o céu

- Ah, isto ainda aguenta.

Vai de pôr os auriculares para ouvir a melodia matinal e toca de iniciar a marcha.

Foram dois agradáveis minutos, até levar com uma trombada d'água que não tenho memória. A chuvinha molha-parvos já molhava era toda a gente, especialmente malta esgrouviada como eu. 

Sem poiso para me abrigar, não tive alternativa se não continuar o percurso em marcha acelerada até à estação. Correr? 'Tá bem abelha. Antes apanhar mais chuva que escarrapachar-me num chão enlameado. 

Heroicamente caminhei, sempre com a dignidade de uma actriz na cena final de um filme romântico dos anos 80, série B.

- Se calhar devia ter trazido um guarda-chuva.

Foi então que avistei uma senhora em plena luta titânica com o seu aparelho mecânico de protecção contra a pluviosidade, qual Mary Poppins dos Infernos, revirando-se descontroladamente em todas as direcções. 

Eu, que perdi todos os guarda-chuvas em que toquei (tipo toque de Midas invertido), apercebi-me de repente porque é que aquele objecto, tão acarinhado pela sociedade actual, me era completamente obtuso.

Ora, na realidade, o chapéu de chuva só cumpre a sua eficácia (mínima), se verificados três requisitos, cumulativamente:

1) Não houver vento
2) O utilizador estiver imóvel
3) O utilizador estiver num plano superior ao do chão

Se não, vejamos: 

1) Havendo vento, de acordo com as regras da física (pelo menos as que eram ensinadas em 1996, mas depois disso já acabaram com um planeta), com chapéu ou sem chapéu, a chuva acaba sempre por molhar-nos. Já nem falo dos pés e das pernas - isso é certinho - estou a falar do tronco. Da parte de cima. É que não há escapatória. Abrimos o guarda-chuva, vem uma rabanada de vento e zumba, já estamos encharcados. A não ser que seja chuvinha molha-parvos. Mas aí ninguém é maricas para usar guarda-chuva. Anda-se mais depressa.

2) O guarda-chuva não guarda nada se estivermos em movimento. Mesmo que não haja vento. A não ser que o dito cujo seja do tamanho equivalente ao de um satélite, as pernas e os pés vão sempre escapar à protecção concedida, porque se adiantam ao resto do corpo (movimento comummente conhecido como "andar"). A alternativa é destapar a cabeça. O corpo inteiro é que não dá. 

Se houver vento e estivermos em movimento (o que não é raro, convenhamos), o panorama ainda é mais ridículo: enfiamos a cabeça e os ombros debaixo da área côncava e o resto que se lixe. O rabo, as pernas, os pés, podem ficar todos ensopadinhos - o meu cabelo é que não! Se por azar vem uma ventania de tal ordem que nos revira o chapéu e parte-nos as galhetas (ou como raios se chamam aquelas varas de metal perigosíssimas) acabou-se tudo, ficamos à mercê das intempéries.

3) A chuva que cai no chão não evapora imediatamente, ou seja: haverá sempre água no chão tornando impotente qualquer guarda-chuva.

Não consigo escrutinar um único motivo razoável para a utilização de um guarda-chuva. É um mito global. Toda a gente os perde. Toda a gente os parte. Ninguém fica a seco.

Está a chover? Usem chapéu d'abas.






terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O meu cavalo branco

Nunca tive aulas de equitação e não houve príncipe encantado que tivesse galopado pelo meu bairro fora, mas se há coisa que me orgulho de ter é um cavalo branco. É de metal e não passa do metro e meio de altura, mas para mim é um garanhão.

Quando era miúda fiz uma birra - das poucas que me lembro - porque queria ter um cavalo. Num quarto andar. Na varanda. Andar com o cavalinho escada acima, escada abaixo, parecia-me completamente razoável. O espaço da varanda era perfeito para uma box. E confesso que até hoje ainda não houve ninguém que demovesse a minha lógica pueril - nem eu própria.

Fica o sonho de um dia aprender a andar a cavalo. Até lá, ando de Renault Clio, que já vai para os seus vinte aninhos. Qualquer coisa como este:




Muitos quilómetros já eu fiz naquele carro, uns mais sofridos que outros. Alguns bastante animados. Outros a refilar com o da frente, com o do lado, com o de trás. Acompanhou-me durante quase toda a licenciatura, o início da minha vida profissional, muitas idas à Costa, ao Meco, a Cascais e outros destinos que não sei descrever. Aturou a minha desorientação geográfica e as horas perdidas no trânsito de Lisboa. Ouviu-me a chorar, a rir e a falar ao telemóvel. Já levou panadas (da esquerda, pois então), multas (de estacionamento) e já ficou sem antena (que estava colada, impedindo qualquer reparação).

Nunca tive de lhe mudar um pneu e nunca me deixou parada na estrada. Esteve para morrer várias vezes, mas aguentou-se sempre até ao seu destino. Até me levar a bom porto.

Há uns anos roubaram-lhe o rádio - o único elemento com valor comercial que continha no seu interior. Julguei que mais nada havia a temer.

Enganei-me. O Universo (chamemos-lhe assim) trocou-me as voltas.

É sempre naqueles dias que estamos atrasados, mais stressados e mais indispostos que os pincéis acontecem.

Sento-me no meu cavalo branco, rodo a chave e 

Nada.

Nem um "clique", nem uma tosse, nem um suspiro, nada.

Um acesso de raiva irrompe-me pescoço fora. Controlo-me. Tento outra vez. Nada.

O relógio parado.

- Havias de ter ficado sem bateria logo hoje, rai's t'a partam.

Terei deixado as luzes ligadas? Não, tudo fechado. Estranho. Não me lembro de ter deixado este guarda-chuva em cima do banco.

Não tinha tempo a perder, fechei a porta e segui caminho.

Liguei para o meu private SOS - a quem carinhosamente chamo de Pai - e explico-lhe a situação

- O Clio ficou sem bateria. Não, não deixei as luzes ligadas. Sim, tenho a certeza que não deixei as luzes ligadas. Está bem, fica então para a semana que vem.

E na semana seguinte, que era altura de mandar fazer a inspecção obrigatória, o meu Pai chama o reboque para tratarem da bateria e do resto que fosse necessário.

Eis senão quando, o mecânico abre o capô e pergunta ao meu Pai

- Onde é que está a bateria?

Ao que o meu Pai, imediatamente, lhe responde

- Não sei, vou ligar à minha filha.

Atendi o meu Pai e, num primeiro momento, nem percebi bem a pergunta

- Eu? Mexi na bateria? Não! A que propósito? Nem abri o capô!

A conclusão era demasiado ridícula para ser real, mas não havia outra explicação. Tinham roubado a bateria ao meu cavalo branco.

 Alguém, com muito pouco para fazer, deu-se ao trabalho de entrar no meu bólide com mais de vinte anos de idade, puxar a patilha do capô e levar a bateria. Não levou mais nada, nem o guarda-chuva. Só mesmo a bateria. Também ficou uma bela trampa, que volta e meia já me andava a falhar. Pois que faça bom proveito.

Eu percebo tanto de mecânica como de japonês em braille, mas algo me diz que aquilo foi um péssimo negócio.

Só espero é que não venham fazer segundas tentas. É que agora já tem uma bateria nova. Está é sem gasolina.





segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Barcelona revisited

Tenho três mãos cheias de histórias para contar e, na vertigem de as escrever, quase que me atropelo, engulo episódios, embrulho os detalhes, tal é a pressa do desfecho.

Calma.

Ora então cá vamos nós.

A minha primeira viagem ao estrangeiro foi a Barcelona. Estávamos em 1998 e quase quase no fim do liceu. Não fomos a Casteldefels, nem a Lloret de Mar, nem a nenhum dos outros típicos locais que levam os adolescentes à loucura, até porque a instituição onde estudava não se permitia a esses devaneios. Foi bastante mais pacato e mereceu inclusivamente uma voltinha por Monserrat.

Toda aquela viagem foi, para mim, fascinante. Língua diferente, moeda diferente (pré-euro), gentes e costumes diferentes, tudo era novidade, maravilhoso, fantástico. Nem as dezasseis horas que passámos dentro de um autocarro para lá chegar diminuíram a empolgação.

É impossível descrever Barcelona sem recorrer a lugares comuns. Não há relato que já não tenha sido feito sobre a sua beleza arquitectónica e urbanística, Gaudi, a Sagrada Família e por aí fora, de modo muito mais eloquente que alguma vez conseguirei.

Remetendo-me à minha insignificância, digo apenas: é uma cidade obrigatória.

Há uns anos, enquanto fazia escala vinda de Amesterdão, percorri as suas ruas numa daquelas camionetes para turistas. Desci ao pé da Marina. Subi as Ramblas. Estava decidido - havia de lá voltar.

Por isso, quando o meu primo me convidou a ir passar uns dias a sua casa, situada a dois quarteirões da Plaza de Catalunya, não hesitei:

- Primo, posso ir aí passar o ano novo?

- Estás à vontade, mas eu não vou cá estar... Quando for aí pelo Natal entrego-te a chave. Estou a partilhar a casa com um casal amigo, mas com eles é tranquilo.

Com primos assim, não me posso queixar da vida.

Desafiei a minha amiga de sempre, pronta para a aventura como eu, e lá fomos nós de corpinho bem feito "re-explorar" a cidade onde havíamos estado há cerca de catorze anos. Ui! Catorze?!? Às vezes esqueço-me que já tenho idade para contar histórias tão antigas.

Encontrar o apartamento não foi nada complicado. Tinha sido alertada que a fachada estava um pouco deteriorada... À conta disso confundi-o por um armazém abandonado.



Ainda tentei lá pôr a chave, mas não tive grande sucesso. Afinal o edifício era umas portas abaixo.

Teria sido boa ideia ter apontado o andar no papeleco da morada. Escada acima, fui experimentando a dita chave em todas as portas, numa filosofia de tentativa-erro. Já era para o tarde e não queria estar a incomodar o meu primo com a minha santa estupidez. Uma vez mais o sucesso não estava do meu lado. Tenho que experimentar ser mais sensata, para ver se resulta. À segunda volta lá me dei por derrotada e lá liguei ao meu primo. Era o 3º.

Os dias passaram-se placidamente passeando pelas Ramblas, Bairro Gótico, Parque Güell, Paseo de Gracia, perdendo-nos nas avenidas e nas ruelas cheias de cor e cheias de Gaudi. Barcelona parece ser feita de açúcar.







Foi numa dessas passeatas que avistámos uma magnífica pista de gelo, onde miúdos e graúdos se divertiam à brava em cima dos seus patins. Nem foi preciso falar.

- Bora?

- Bora.

E lá estivemos, mais ou menos meia hora, a deslizar pelo gelo qual artistas olímpicas. Admito que no início a coisa parecia que ia correr mal, a gravidade pregou-nos uns quantos sustos, mas nada que nos demovesse. Ninguém caiu e passado de dez minutos (talvez nem tanto) até já fazíamos piruetas. 

Enfim, momentos a recordar.

A única coisa menos agradável foi o petardo fecal que um animal voador resolveu arremessar-me em pleno Parque Güell.

- Que linda a vista de Barc... SPLASH!... Que raios....!

Passei a mão pela testa e nos dedos vinha uma substância fria, achocolatada, meio granulada, meio liquefeita.

Quase chorei.

Assustei-me quando olhei para o ar enojado da minha amiga que parecia ter visto um zombie a comer um crânio. 

- TIRA-ME ISTO DAQUI!

Abençoados lenços de papel! Nunca pensei agradecer tanto ao senhor da Kleenex.

Quase que aposto que foi um daqueles ratos-do-ar, para se vingar do meu manifesto anti-pombos que escrevi há uns meses. Ao menos falhou-me o cabelo, o sacana zarolho do pombo.

De resto, não me vou esquecer tão depressa das cañas nas Ramblas, do mercado das mil cores e sabores, das tapas com vista para a Sagrada Família e de passar a meia noite no meio de quarenta mil pessoas em plena Plaza de Catalunya. Faltou um pouco de fogo de artifício e talvez alguma animação, mas depois compensou-se na noite. Essa fica por contar.

Hasta la vista, Barcelona!