sexta-feira, 26 de outubro de 2012

2012: Odisseia nos transportes públicos

De há uns meses a esta parte voltei a frequentar o maravilhoso mundo dos transportes públicos. Diariamente percorro a magnífica cidade de Lisboa, de lés a lés and back, saltitando entre a Carris, a CP e o Metro.

É uma verdadeira aventura. Uma inspiração para o próximo filme de Indiana Jones. Ou para a série "The Walking Dead". Algo intermédio.

Há todo um ritual que precede o início da minha odisseia diária. Saio de casa com o passe em punho (viva o L1!), MP4 numa mão e cigarro na outra, e assim me entretenho durante a espera.

Eis que se avista a lagarta laranja e eu já pronta para esfregar o meu L1 numa das maquinetas estrategicamente mal colocadas à entrada do autocarro. Ainda estou para perceber porque raios colocam uma das maquinetas à frente do motorista e outra atrás, se só consegue entrar uma pessoa de cada vez. Resultado: quem é mais lento no procedimento do esfrega-o-passe, ou quem não o tem e precisa de comprar bilhete, acaba esmagado à frente do motorista pelas pessoas que avidamente procuram a maquineta colocada da parte de trás, para poderem "validar" o respectivo "título" de transporte. 

Mas não se pode esfregar de qualquer maneira, não senhor: tem que ser delicada e pausadamente, qual maestro em dia de sinfonia, para que o sensível aparelho possa ler a informação magnética contida no colorido cartãozinho. Caso contrário leva-se com um desagradável piiii.

No autocarro vai-se em pé, que o tempo do percurso não justifica ir sentado. Também não me agarro a lado nenhum, que já treinei o equilíbrio. Imagino-me sempre em cima de uma prancha de surf a apanhar a onda da minha vida. Um dia que vá fazer uma aula, vão chamar-me um prodígio.

Chegada à paragem de destino, salto para a rua, em direcção à estação de comboio. Com isto já lá vão 10-15 minutos e 5 músicas ouvidas. Valha-me a minha diversificada playlist.

Uma vez mais, esfrego cuidadosamente o passe nas portinhas automáticas para a entrada na plataforma. Em hora de ponta, os comboios passam, em média, de seis em seis minutos. Todas as carruagens vão apinhadas, cheias de cheiro de gente semi-sonâmbula, ensimesmadas com os seus livros, jornais, headphones ou a olhar para o vazio bocejante.

É nessa altura que tento atingir uma janela com um olho e acerto num bocadinho do Tejo. Tudo o resto pode ser horrífico, mas aquele vislumbre é um privilégio. Espero que, ao menos durante uns breves milésimos de segundo, toda aquela gente consiga apreciar esse encanto. 

Chegada ao meu destino, sigo no meio da carneirada para o metropolitano. Não sei se todos me seguem ou se sou eu que estou a seguir toda a gente. Prefiro nem pensar muito nisso. Nessa altura já passaram mais 20 minutos e a minha cabeça viaja na música que vou ouvindo, nas melodias e nas histórias cantadas que já sei de cor. Quando passa o "Englishman in New York" do Sting imagino-me de bengala a percorrer as ruas de Manhattan. A gentleman should walk but never run. 

Esfrega-o-passe uma vez, desço dois lances de escadas, esfrega-o-passe outra vez. Alguns passageiros mais inexperientes, que ainda não dominam a técnica, estão que tempos a friccionar nervosamente o visor da portinhola, que nem assim se convence. E entretanto dezenas de pessoas acumulam-se em fila.

Malta: não friccionem. Não resulta. Aproximem o passe do visor, delicadamente como se fosse a última carta de um castelo de cartas. E voilà! Abrem-se as portinholas.

Regra geral, quando estou a chegar à plataforma do metro, acabou de arrancar um. Louvado será o dia em que comboio e metro se coordenam nos horários, facilitando a vida às dezenas de passageiros que utilizam essa ligação e, como eu, pagam cerca de 50€ de passe (ou mais) por ambos os meios de transporte. Melhor ainda seria aumentar a frequência dos mesmos. 4 minutos em hora de ponta é muito tempo. Especialmente para quem já vai com meia hora de viagem.

Chegado o comboio subterrâneo as gentes amontoam-se para tentar entrar primeiro, não vá o mono eléctrico fugir. Tanto calor humano. Tanto fedor urbano. Cotoveladas, cargas de ombro, pisadelas e encontrões. Entro no jogo para sobreviver e fixo-me num único objectivo: um lugar sentado. Parecemos zombies on speeds avistando carne fresca.

Volta e meia, na linha verde, entram os suspeitos do costume a pedir uma moedinha. São sempre os mesmos. Um deles - julgo que o mais popular - canta uma música meio hip-hop acompanhada por ritmos alucinantes feitos com a sua bengala e uma espécie baqueta que usa para contra-ritmo.

"Aaaa-gradece-se a quem tenha a bondade de m'auxiliareee". 

Mudar de linha. Subir escadas. Mais carneirada. Mais música. Escadas rolantes avariadas (nunca as vi a funcionar). Cheiro a  pão quente. Mais quatro minutos. Mais música. "Air Batucada" dos Thievery Corporation. 

"(...) E eis que súbito o avisto fulgurante, na sua pompa e aérea formosura (...)", não o Palácio encantado da Ventura (obrigada Antero) mas a saída para o meu destino final.

Uma hora de viagem.

Venham agora falar-me de greves.




terça-feira, 16 de outubro de 2012

Roendo umas febras de coentrada na falésia

"Vamos dar uma volta este fim-de-semana? Vai estar um calorão..."

"E se fôssemos a Porto Covo?"

Foi quanto bastou. Sem mais nem ontem, desamarrando as desculpas, meti o fato de banho e as xanatas num saco, agarrei na minha amiga e rumámos à Costa Vicentina.

Não sei se existem praias tão bonitas como as que conheço em terras lusas. Para alguns pode parecer provincianismo, mas se é para estar de papo para o ar, a apanhar escaldões e a enterrar os pés na areia, que seja a ouvir "é fruta óóó chocolate" e a lambuzar-me com bolas de berlim e se possível com línguas da sogra. Não duvido que as águas quentes das Caraíbas ou os resorts das Maldivas sejam tentadoras, mas "línguas da sogra" em Dhivehi deve soar, no mínimo, a um grito de guerra.

Porto Covo é tão apetitoso que dá vontade de comer. As pequenas moradias cheias de branco e de cor fazem "pandam" com as ruelas calcetadas, salpicadas com areia. Cheira a Verão, a sal, a gargalhadas e a noites bem passadas. Vêem-se surfistas, rastas, jovens casais, crianças, avós, turistas e pescadores, sem que ninguém pareça deslocado.

Chegadas a este cenário idílico, já passava largamente da hora do jantar, não estivemos para modas e mandámos logo vir o belo do arroz de marisco que faria salivar o vegetariano mais radical. E que dose! Sobrou mais de metade. Perdi as vergonhas e mandei guardar o resto em tupperwares. Foi pena ter-me esquecido deles em cima da mesa, mas os regalos da gelataria d'"O Marquês", ali ao lado, invadiram-me repentinamente os pensamentos e ocuparam-me estômago.

Não obstante o farto repasto, ainda arranjei espaço para uma amarguinha com gelo e limão (cada vez mais o meu aperitivo/digestivo favorito), na companhia de um casal amigo que nos acolheu em sua casa com uma hospitalidade sem fronteiras. Anunciava-se um fim-de-semana em grande.

O dia seguinte começou com um pequeno almoço tardio e relaxante na pequena praceta que enche Porto Covo. Estava uma manhã particularmente bem-disposta, daquelas que nos fazem sorrir sem razão aparente e apreciar as pequenas coisas da vida que habitualmente damos por garantida. Um sumo de laranja fresco. O sol que nos abraça. A companhia de uma amiga de longa data. A paisagem partilhada.



O percurso até à praia foi feito a pé, naturalmente. O meu magnífico sentido de orientação equivalente ao de uma galinha sem cabeça levou-nos a trilhos por entre falésias, semeadas de cactos, pintadas com terra avermelhada e ribanceiras íngremes. Lindo, sem dúvida. Mas de havaianas não tem tanta graça. Só porque pode fugir um pé. Não fosse a minha amiga ainda andava por lá perdida entre dunas ou estatelada numa gruta.

A pequena aventura não foi em vão. A Praia Grande até pode ser a mais concorrida de Porto Covo, mas nem por isso deixa de ser encantadora e relaxante. Sem atropelos, sem gritarias, sem desconfortos. E aí sim, enterrei finalmente os pés na areia e senti-me verdadeiramente abençoada.



O resto do dia foi repleto de dolce fare niente e concluído com umas belas amêijoas à bulhão pato e uns camarões a la guilho regados com uma senhora imperial. A amarguinha com gelo e limão também não escapou. Não fosse o Lou Reed tão absolutamente melancólico a cantar o "Perfect Day", diria que essa era a melodia eleita para este dia.

No domingo acordámos pela fresquinha para conhecer a Praia do Malhão. É practicamente selvagem - não fossem os nadadores salvadores - e tem um areal sem horizonte definido. Do oceano emergem rochedos com desenhos apocalípticos, formando pequenas lagoas quando a maré vaza. É um lugar que inspira eternidade.



As bolachas e os pistacios que levámos não saciaram a fome entretanto acumulada e pela hora do almoço fomos tentar a sorte na Praia do Pessegueiro. Embora não tenha o charme virginal da Praia do Malhão, a Ilha do Pessegueiro confere àquela paisagem um toque cinematográfico, talvez sugerido pela história do Vizir de Odemira cantada por Rui Veloso.


Estive tentada a nadar até lá mas detive-me a tempo, não fosse o meu sentido de orientação pregar-me partidas e ainda ia acabar nas Américas ou, com sorte, nos Açores.

Mas a fome permanecia. O único estabelecimento comercial num raio de 10 km é o restaurante "A Ilha". Fiquei surpreendida por estar tão pouca gente no restaurante, na esplanada que oferecia uma paisagem bastante reconfortante, considerando, para mais, que era domingo à tarde.

"É a crise"

O menu do dia estava fixado cá fora, na esplanada. A intenção era só petiscar, para evitarmos a congestão no mergulho de despedida. Segundo aquele menu, havia choco frito, febras de coentrada e outros petiscos. Mas o pica pau não tinha preço, o que poderia querer dizer que não havia. Para quem não sabe (duvido que haja algum português - que se preze -  que não saiba o que é), o pica-pau é composto por vários tipos de carne, bem cozinhada e temperada, às vezes ligeiramente picante.

A Senhora que nos atendeu, que supus ser a gerente do estabelecimento, disse-nos sim senhora que sim, que havia pica-pau. Oh maravilha! Venha o pica-pau e um pratinho com choco frito faz favor, a modos para a gente petiscar.

Eis se não quando nos servem um imponente prato de choco com arroz, batata e salada. Fiquei um pouco surpreendida e nem reparámos no outro prato que nos haviam servido. Chamei a Senhora e disse-lhe que tínhamos pedido apenas um pratinho com choco, que não queríamos nem arroz nem salada.

"Qual é a diferença? Vai pagar o mesmo! Mas se quiser vou lá dentro e tiro os acompanhamentos!"

Perante aquela lógica irredutível encolhi os ombros e cedi ao tradicional conformismo lusitano e à sua máxima de sempre: se é de borla, leva-se.

Quando prestei atenção ao outro prato e levei uma garfada à boca, apercebi-me que algo estava errado.

"Não tínhamos pedido pica-pau?"

"Sim... mas isso não parece pica-pau de facto"

"Pois não... isto sabe a coentros"

Eram as febras de coentrada. Ou outra coisa qualquer. Pica-pau é que não era. Até estavam boas e por isso, uma vez mais, abraçámos a resignação. Pelo menos durante uns minutos, até ser picada por uma vespa que me fez guinchar como uma macaca. Não foi bonito. A sorte é que ao meu lado estava uma senhora que me ensinou uma mezinha contra estes infortúnios: pressionar a picadela com uma moeda, preferencialmente de dois euros, durante um bocadinho. E resultou.

Não sei se por isso, ou simplesmente porque sim, quando a Senhora nos veio perguntar se precisávamos de mais alguma coisa, aproveitei para lhe dizer, educadamente, que o que nos tinha servido não era pica-pau.

"Ai isso é que era!"

"Não minha Senhora, isto eram febras de coentrada. Muito boas por sinal, mas febras de coentrada"

"É a mesma coisa!"

"Não é não minha Senhora"

"Então como é que a Menina faz as febras de coentrada lá na sua terra?"

Por momentos senti-me no Isto Só Visto e olhei em redor à procura de uma câmara escondida. Aposto que pensou que éramos umas tansas da cidade que não saberíamos distinguir porco de vaca. Era o que faltava. Saltou-me logo o orgulho das minhas costelas beirãs e ribatejanas.

"A Senhora tem os dois pratos no menu, deve saber melhor que eu... Mas tanto quanto sei o pica-pau é composto por vários tipos de carne e um molho ligeiramente picante..."

"Ai não, não, assim não sei fazer"

Percebi então porque é que o único restaurante num raio de 20 km ao pé da Ilha do Pessegueiro estava vazio. Fiquei verdadeiramente triste ao imaginar a quantidade de gente que esta atitude já não terá afugentado. Será pura ignorância ou simplesmente não querer ter trabalho?

O mais engraçado aconteceu quando pedimos a conta. Se estivesse descriminado "pica-pau" teríamos dito que não foi isso o servido. Se estivesse descriminado "febras de coentrada" estava a dar a mão à palmatória.

Mas nunca se deve duvidar do xico-espertismo português, nem do conceito geral e abstracto dos "diversos".