Às 6h20 da manhã, com pouco mais de hora e meia de sono, arrastei a minha mala com quase 30 kg até à entrada de casa, onde o Sr. Mendonça me esperava (há cerca de meia hora) com o seu habitual sorriso e boa disposição para a minha última viagem nas ruas de Luanda.
"Desculpe o atraso, Sr. Mendonça."
"Não tem problema... Tive de vir mais cedo por causa do trânsito."
Boa gente, o Sr. Mendonça.
Despedi-me mentalmente dos musseques que avistava, das zungueiras, do Bairro do Prenda onde comi funge, do trânsito, dos buracos, do calor, da Cuca e da música que se ouvia na rua. O sono impediu um sentimentalismo mais profundo, daquele que se sente nos olhos. E ainda bem.
Chegada ao aeroporto, dirigi-me ao guichet da companhia aérea para fazer o drop off (abençoado check in online, não fosse isso ainda hoje estava na fila).
"A mala pesa 28 kg, tem que pagar o extra."
"Não me faça isso... eu tiro algum peso"
Retirei um par de sapatos que miraculosamente couberam na mala de mão e o gel duche de quase 2 litros, o qual estava disposta a oferecer ao cumpridor funcionário.
Voltei a colocar a mala no tapete. Pesava 26,5 kg.
Exibi o gel duche ao funcionário na esperança de que o aceitasse como gasosa. Estava meio cheio, mas nunca se sabe.
"É isto que está a fazer diferença?" Abanou o recipiente desconfiado e hesitante. "Pode voltar a pô-lo na mala." Um estalo de luva branca, literalmente.
Agradeci vigorosamente e observei, aliviada, a minha mala (coitada, mais parecia um ovo gigante) a seguir caminho tapete fora. Não sei como consigo sempre viajar com excesso de peso à borla. Deve ser porque sou alta.
Decidi fumar um último cigarro em Luanda e procurava o maço de tabaco na minha gigante mala de mão, com sapatos à mistura, quando de repente ouvi o meu nome em tom de interrogação.
Ao levantar a cabeça deparei-me com uma elegante moça, solenemente fardada, a sorrir-me com espanto e contentamento. Não duvidei por um segundo de quem seria, mesmo com farda de comandante. Foram muitos anos a partilhar a mesma sala de aula, o mesmo recreio, o mesmo elástico de saltar, as mesmas brincadeiras e as mesmas zaragatas. Tinham passado mais de dez anos desde a última vez que nos vimos, mas há pessoas que não se esquecem.
Dirigi-me a ela, retribuindo a surpresa e alegria do reencontro e não demorou muito para perceber que íamos no mesmo vôo.
"Depois vou lá dar-te um beijinho."
Já sentada no avião, um simpático comissário de bordo aproximou-se.
"Gostava que me acompanhasse. Traga as suas coisas... é que vai ficar sentada lá à frente."
Confesso que precisei de alguns segundos para perceber que "lá à frente" era a classe executiva. Escondi o meu contentamento infantil o mais que podia. Não sei se consegui. Só me faltou bater palminhas.
"O Comandante chamou-a ao cockpit para assistir à descolagem."
Tive a sensação de ter regressado à meninice e que me tinham acabado de dar um balde de Legos. Ou o último set da Playmobil. Nunca fui muito dada a bonecas.
E entre milhares de botões, alavancas, ecrans, coordenadas e linguagem que a mim me pareceu imperceptível - mas estou certa que só a mim - tive o maravilhoso privilégio de assistir à descolagem da imponente aeronave que transportava cerca de 150 passageiros para Lisboa.
A quem tem medo de andar de avião posso assegurar: eles sabem o que estão a fazer. Palavra.
Às tantas ganhei coragem e perguntei ao Comandante qual teria sido a experiência mais assustadora.
"Uma vez no Brasil quase estive para abortar a descolagem porque o peso do avião excedia em muitas toneladas o permitido. Mas depois lá consegui, em segurança, naturalmente."
Jurei a mim mesma nunca mais viajar com excesso de peso. Em silêncio, para não ferir susceptibilidades.
Havia muita conversa para pôr em dia, mas optei por não atrapalhar a navegação e confesso que estava com alguma ansiedade para experienciar, pela primeira vez, uma viagem "à executiva". Pode soar a piroseira, mas é verdade. Além disso, tive o convite para regressar mais tarde.
Mal me sentei não resisti à tentação de brincar freneticamente com o botãozinho de levantar e estender a cadeira, só pela graça de me sentar e deitar mexendo apenas um dedo.
"Djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj"
Parei quando o passageiro do lado olhou para mim como se fosse uma extra-terrestre. Depois diverti-me com os botões da televisão, que ao menos era mais discreto.
Em executiva enchem-nos com mimos. E dão-nos talheres a sério, daqueles que antigamente toda a gente levava para recordação.
"Deseja um aperitivo?" "Prefere sopa ou entrada fria?" "Posso oferecer-lhe um chocolate?"
De barriguinha cheia, estendi a cadeira até ficar completamente horizontal e dormi o sono dos justos até à altura da aterragem (ou, tecnicamente, da "aproximação"), altura em que regressei ao cockpit.
A aproximação correu pacificamente e orgulhosa assisti à brilhante execução da minha amiga. Bravo.
Desfiz-me em agradecimentos, trocámos números de telefone e ficou a promessa de um reencontro.
O regresso não podia ter sido mais triunfal. O contraste de realidades foi chocante. Ao menos tinha os meus Pais à espera para afogar as saudades, com gerberas e tudo. Aí já não consegui evitar o sentimentalismo mais profundo.