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Não Gosto de Queijo
Mas tenho um grande apreço por tudo o resto.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
O guarda-chuva
Hoje apanhei uma daquelas molhas à antiga. Resolvi ir a pé para o comboio, para desenjoar do autocarro, e já pingava aquela chuvinha molha-parvos quando saí porta fora. Ainda são uns bons dez minutos de minha casa à estação, mas tinha vestido um impermeável, levava um chapéu de abas (também ele próprio para a chuva) e confiante, olhei para o céu
- Ah, isto ainda aguenta.
Vai de pôr os auriculares para ouvir a melodia matinal e toca de iniciar a marcha.
Foram dois agradáveis minutos, até levar com uma trombada d'água que não tenho memória. A chuvinha molha-parvos já molhava era toda a gente, especialmente malta esgrouviada como eu.
Sem poiso para me abrigar, não tive alternativa se não continuar o percurso em marcha acelerada até à estação. Correr? 'Tá bem abelha. Antes apanhar mais chuva que escarrapachar-me num chão enlameado.
Heroicamente caminhei, sempre com a dignidade de uma actriz na cena final de um filme romântico dos anos 80, série B.
- Se calhar devia ter trazido um guarda-chuva.
Foi então que avistei uma senhora em plena luta titânica com o seu aparelho mecânico de protecção contra a pluviosidade, qual Mary Poppins dos Infernos, revirando-se descontroladamente em todas as direcções.
Eu, que perdi todos os guarda-chuvas em que toquei (tipo toque de Midas invertido), apercebi-me de repente porque é que aquele objecto, tão acarinhado pela sociedade actual, me era completamente obtuso.
Ora, na realidade, o chapéu de chuva só cumpre a sua eficácia (mínima), se verificados três requisitos, cumulativamente:
1) Não houver vento
2) O utilizador estiver imóvel
3) O utilizador estiver num plano superior ao do chão
Se não, vejamos:
1) Havendo vento, de acordo com as regras da física (pelo menos as que eram ensinadas em 1996, mas depois disso já acabaram com um planeta), com chapéu ou sem chapéu, a chuva acaba sempre por molhar-nos. Já nem falo dos pés e das pernas - isso é certinho - estou a falar do tronco. Da parte de cima. É que não há escapatória. Abrimos o guarda-chuva, vem uma rabanada de vento e zumba, já estamos encharcados. A não ser que seja chuvinha molha-parvos. Mas aí ninguém é maricas para usar guarda-chuva. Anda-se mais depressa.
2) O guarda-chuva não guarda nada se estivermos em movimento. Mesmo que não haja vento. A não ser que o dito cujo seja do tamanho equivalente ao de um satélite, as pernas e os pés vão sempre escapar à protecção concedida, porque se adiantam ao resto do corpo (movimento comummente conhecido como "andar"). A alternativa é destapar a cabeça. O corpo inteiro é que não dá.
Se houver vento e estivermos em movimento (o que não é raro, convenhamos), o panorama ainda é mais ridículo: enfiamos a cabeça e os ombros debaixo da área côncava e o resto que se lixe. O rabo, as pernas, os pés, podem ficar todos ensopadinhos - o meu cabelo é que não! Se por azar vem uma ventania de tal ordem que nos revira o chapéu e parte-nos as galhetas (ou como raios se chamam aquelas varas de metal perigosíssimas) acabou-se tudo, ficamos à mercê das intempéries.
3) A chuva que cai no chão não evapora imediatamente, ou seja: haverá sempre água no chão tornando impotente qualquer guarda-chuva.
Não consigo escrutinar um único motivo razoável para a utilização de um guarda-chuva. É um mito global. Toda a gente os perde. Toda a gente os parte. Ninguém fica a seco.
Está a chover? Usem chapéu d'abas.
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
O meu cavalo branco
Nunca tive aulas de equitação e não houve príncipe encantado que tivesse galopado pelo meu bairro fora, mas se há coisa que me orgulho de ter é um cavalo branco. É de metal e não passa do metro e meio de altura, mas para mim é um garanhão.
Quando era miúda fiz uma birra - das poucas que me lembro - porque queria ter um cavalo. Num quarto andar. Na varanda. Andar com o cavalinho escada acima, escada abaixo, parecia-me completamente razoável. O espaço da varanda era perfeito para uma box. E confesso que até hoje ainda não houve ninguém que demovesse a minha lógica pueril - nem eu própria.
Fica o sonho de um dia aprender a andar a cavalo. Até lá, ando de Renault Clio, que já vai para os seus vinte aninhos. Qualquer coisa como este:
Muitos quilómetros já eu fiz naquele carro, uns mais sofridos que outros. Alguns bastante animados. Outros a refilar com o da frente, com o do lado, com o de trás. Acompanhou-me durante quase toda a licenciatura, o início da minha vida profissional, muitas idas à Costa, ao Meco, a Cascais e outros destinos que não sei descrever. Aturou a minha desorientação geográfica e as horas perdidas no trânsito de Lisboa. Ouviu-me a chorar, a rir e a falar ao telemóvel. Já levou panadas (da esquerda, pois então), multas (de estacionamento) e já ficou sem antena (que estava colada, impedindo qualquer reparação).
Nunca tive de lhe mudar um pneu e nunca me deixou parada na estrada. Esteve para morrer várias vezes, mas aguentou-se sempre até ao seu destino. Até me levar a bom porto.
Há uns anos roubaram-lhe o rádio - o único elemento com valor comercial que continha no seu interior. Julguei que mais nada havia a temer.
Enganei-me. O Universo (chamemos-lhe assim) trocou-me as voltas.
É sempre naqueles dias que estamos atrasados, mais stressados e mais indispostos que os pincéis acontecem.
Sento-me no meu cavalo branco, rodo a chave e
Nada.
Nem um "clique", nem uma tosse, nem um suspiro, nada.
Um acesso de raiva irrompe-me pescoço fora. Controlo-me. Tento outra vez. Nada.
O relógio parado.
- Havias de ter ficado sem bateria logo hoje, rai's t'a partam.
Terei deixado as luzes ligadas? Não, tudo fechado. Estranho. Não me lembro de ter deixado este guarda-chuva em cima do banco.
Não tinha tempo a perder, fechei a porta e segui caminho.
Liguei para o meu private SOS - a quem carinhosamente chamo de Pai - e explico-lhe a situação
- O Clio ficou sem bateria. Não, não deixei as luzes ligadas. Sim, tenho a certeza que não deixei as luzes ligadas. Está bem, fica então para a semana que vem.
E na semana seguinte, que era altura de mandar fazer a inspecção obrigatória, o meu Pai chama o reboque para tratarem da bateria e do resto que fosse necessário.
Eis senão quando, o mecânico abre o capô e pergunta ao meu Pai
- Onde é que está a bateria?
Ao que o meu Pai, imediatamente, lhe responde
- Não sei, vou ligar à minha filha.
Atendi o meu Pai e, num primeiro momento, nem percebi bem a pergunta
- Eu? Mexi na bateria? Não! A que propósito? Nem abri o capô!
A conclusão era demasiado ridícula para ser real, mas não havia outra explicação. Tinham roubado a bateria ao meu cavalo branco.
Alguém, com muito pouco para fazer, deu-se ao trabalho de entrar no meu bólide com mais de vinte anos de idade, puxar a patilha do capô e levar a bateria. Não levou mais nada, nem o guarda-chuva. Só mesmo a bateria. Também ficou uma bela trampa, que volta e meia já me andava a falhar. Pois que faça bom proveito.
Eu percebo tanto de mecânica como de japonês em braille, mas algo me diz que aquilo foi um péssimo negócio.
Só espero é que não venham fazer segundas tentas. É que agora já tem uma bateria nova. Está é sem gasolina.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Barcelona revisited
Tenho três mãos cheias de histórias para contar e, na vertigem de as escrever, quase que me atropelo, engulo episódios, embrulho os detalhes, tal é a pressa do desfecho.
Calma.
Ora então cá vamos nós.
A minha primeira viagem ao estrangeiro foi a Barcelona. Estávamos em 1998 e quase quase no fim do liceu. Não fomos a Casteldefels, nem a Lloret de Mar, nem a nenhum dos outros típicos locais que levam os adolescentes à loucura, até porque a instituição onde estudava não se permitia a esses devaneios. Foi bastante mais pacato e mereceu inclusivamente uma voltinha por Monserrat.
Toda aquela viagem foi, para mim, fascinante. Língua diferente, moeda diferente (pré-euro), gentes e costumes diferentes, tudo era novidade, maravilhoso, fantástico. Nem as dezasseis horas que passámos dentro de um autocarro para lá chegar diminuíram a empolgação.
É impossível descrever Barcelona sem recorrer a lugares comuns. Não há relato que já não tenha sido feito sobre a sua beleza arquitectónica e urbanística, Gaudi, a Sagrada Família e por aí fora, de modo muito mais eloquente que alguma vez conseguirei.
Remetendo-me à minha insignificância, digo apenas: é uma cidade obrigatória.
Há uns anos, enquanto fazia escala vinda de Amesterdão, percorri as suas ruas numa daquelas camionetes para turistas. Desci ao pé da Marina. Subi as Ramblas. Estava decidido - havia de lá voltar.
Por isso, quando o meu primo me convidou a ir passar uns dias a sua casa, situada a dois quarteirões da Plaza de Catalunya, não hesitei:
- Primo, posso ir aí passar o ano novo?
- Estás à vontade, mas eu não vou cá estar... Quando for aí pelo Natal entrego-te a chave. Estou a partilhar a casa com um casal amigo, mas com eles é tranquilo.
Com primos assim, não me posso queixar da vida.
Desafiei a minha amiga de sempre, pronta para a aventura como eu, e lá fomos nós de corpinho bem feito "re-explorar" a cidade onde havíamos estado há cerca de catorze anos. Ui! Catorze?!? Às vezes esqueço-me que já tenho idade para contar histórias tão antigas.
Encontrar o apartamento não foi nada complicado. Tinha sido alertada que a fachada estava um pouco deteriorada... À conta disso confundi-o por um armazém abandonado.
Ainda tentei lá pôr a chave, mas não tive grande sucesso. Afinal o edifício era umas portas abaixo.
Teria sido boa ideia ter apontado o andar no papeleco da morada. Escada acima, fui experimentando a dita chave em todas as portas, numa filosofia de tentativa-erro. Já era para o tarde e não queria estar a incomodar o meu primo com a minha santa estupidez. Uma vez mais o sucesso não estava do meu lado. Tenho que experimentar ser mais sensata, para ver se resulta. À segunda volta lá me dei por derrotada e lá liguei ao meu primo. Era o 3º.
Os dias passaram-se placidamente passeando pelas Ramblas, Bairro Gótico, Parque Güell, Paseo de Gracia, perdendo-nos nas avenidas e nas ruelas cheias de cor e cheias de Gaudi. Barcelona parece ser feita de açúcar.
Foi numa dessas passeatas que avistámos uma magnífica pista de gelo, onde miúdos e graúdos se divertiam à brava em cima dos seus patins. Nem foi preciso falar.
- Bora?
- Bora.
E lá estivemos, mais ou menos meia hora, a deslizar pelo gelo qual artistas olímpicas. Admito que no início a coisa parecia que ia correr mal, a gravidade pregou-nos uns quantos sustos, mas nada que nos demovesse. Ninguém caiu e passado de dez minutos (talvez nem tanto) até já fazíamos piruetas.
Enfim, momentos a recordar.
A única coisa menos agradável foi o petardo fecal que um animal voador resolveu arremessar-me em pleno Parque Güell.
- Que linda a vista de Barc... SPLASH!... Que raios....!
Passei a mão pela testa e nos dedos vinha uma substância fria, achocolatada, meio granulada, meio liquefeita.
Quase chorei.
Assustei-me quando olhei para o ar enojado da minha amiga que parecia ter visto um zombie a comer um crânio.
- TIRA-ME ISTO DAQUI!
Abençoados lenços de papel! Nunca pensei agradecer tanto ao senhor da Kleenex.
Quase que aposto que foi um daqueles ratos-do-ar, para se vingar do meu manifesto anti-pombos que escrevi há uns meses. Ao menos falhou-me o cabelo, o sacana zarolho do pombo.
De resto, não me vou esquecer tão depressa das cañas nas Ramblas, do mercado das mil cores e sabores, das tapas com vista para a Sagrada Família e de passar a meia noite no meio de quarenta mil pessoas em plena Plaza de Catalunya. Faltou um pouco de fogo de artifício e talvez alguma animação, mas depois compensou-se na noite. Essa fica por contar.
Hasta la vista, Barcelona!
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Regresso ao passado
Há coisa de três anos, mais ou menos por esta altura, fui passar o fim-de-semana a Barcelona, para participar num torneio de Ultimate Frisbee, desporto que pratico desde 2008.
Comprei o bilhete online, no site da Vueling, com uma antecedência extraordinária (tal era a vontade) e por isso não me surpreendi que o preço fosse mais baixo que o habitual. Partida na sexta feira, dia 30 de Outubro, e regresso no domingo. 100 euros. Limpinho. Ai tão contente que eu estava. Nada melhor para fugir à rotina que dois dias fora do circuito lisboeta.
Uma semana antes de embarcar, recebo um e-mail da Vueling,
"Perdon por la molestia..."
Mau.
Estes sacanas das companhias low cost pensam que têm o rei na barriga.
Depois de muita conversa lá percebi que tiveram de antecipar uma hora o voo de regresso. Não me causava grande molestia, queria era ir, e lá aceitei a alteração sem estrebuchar.
A partida correu sem makas. Há poucas sensações como a de me enterrar na cadeira do avião (à janela, sempre à janela) colocar os headphones, música no volume máximo, pensar "levem-me. levem-me pelo ar", ver o quotidiano tão pequenino, tão insignificante, a afastar-se e a afastar-me, a sentir a gravidade no umbigo e a relativização de todos os problemas e de toda a existência. Mesmo que seja por umas breves horas.
Foi um fim-de-semana delicioso, desportiva e socialmente intenso, daqueles cheios de histórias para contar e que se estendem na memória durante toda a vida. Felizmente, a vida, tem-me proporcionado muitos momentos como esses. E todos eles estão muito bem guardados.
Chegou o domingo, por acaso bastante chuvoso, mas adequado ao regresso. Um casal amigo que também tinha voo marcado para a mesma altura fez comigo o trajecto para o aeroporto. Ele, português, seguia para Munique, ela, francesa, partia para Lyon.
O voo para Lyon era o primeiro a descolar e foram feitas as devidas despedidas. É sempre comovente observar um casal apaixonado a dizer, uma vez mais, até breve.
Pouco depois, chegou a minha vez e o meu amigo acompanhou-me até à segurança. Não levava bagagem de porão e já com o check in feito entreguei o meu boarding pass ao segurança.
Ele olha para o bilhete, olha para mim, olha novamente para o bilhete e diz-me com o olhar mais despiciente que já me foi lançado e com o sotaque mais comum que já ouvi
"Your flight is not today. It's tomorrow"
Claramente ele estava a ver mal.
Agarrei no papeleco e confirmei: data de regresso - 2 de Novembro.
Então hoje não é 2 de Novembro?
Regresso à realidade aos trambolhões e apercebo-me do óbvio: a culpa é da Vueling.
Aquele pernicioso e-mail enviado com uma semana de antecedência era uma armadilha. Além da hora, alteraram o dia de regresso, de propósito, os malandros, e nem me disseram nada. Sacanas! Trastes! Devem pensar que têm o rei na barriga.
O meu amigo, que nessas coisas também não se fica, agarrou em mim (que já começava a ficar ruborizada de aflição) e não esteve para meias medidas,
Vamos já à Vueling reclamar disto. Pede o livro de reclamações. Isto não pode ficar assim, quem é que eles pensam que são? Vais já exigir que te ponham no voo seguinte ou que te devolvam o dinheiro.
Ah pois é. Comigo não se brinca.
E lá nos enfileirámos para o guichet da Vueling, autoritários do meu direito de reclamação. O pior é que não podia faltar ao trabalho na segunda-feira. Tinha mesmo de regressar. E comecei a ficar verdadeiramente nervosa.
Chegada a minha vez, expliquei em portunhol e espanglês a situação.
E a resposta não foi inovadora. "Perdon por la molestia pero..." já não havia mais voos.
Qual perdon qual quê pá! Esto es absolutamente inaceptable! Quiero another flight ahora! Today! Give me the book of reclamaciones por favor. Como podes alterar la data de um flight sem dizer expressamente ao passenger! This is an ultraje!
Já os meus olhos marejavam e os meus braços despregavam como bandeiras, quando o funcionário pediu-me para esperar um pouco.
Ainda por cima. São mesmo uns trafulhas.
Acometida por um estado de ansiedade, revolta, nervosismo e preocupação não contive a choradeira. Vejo agora que é um estado recorrente da minha parte, tenho de ver se resolvo isto.
De repente ocorreu-me, assim do nada,
Será que me enganei a marcar a data de regresso?
Que disparate, respondeu-me o meu amigo muito indignado, como é que te ias enganar numa coisa dessas? Ninguém se engana nessas coisas! Não querias regressar domingo? Então como é que te ias enganar?
Pois está claro, óbvio que não me enganei, que disparate. A culpa é da Vueling.
Entretanto, chegava a hora da descolagem do voo para Munique e o meu amigo teve de me deixar.
"Assim que souberes de mais alguma coisa manda-me uma mensagem. E não saias daqui sem pelo menos te devolverem o dinheiro."
"Ai não tenhas dúvidas"
Não demorou muito mais tempo para o senhor funcionário regressar com mais explicações. Os meus olhos chispavam. "Olhe, a única alteração que foi feita no voo reservado por si, foi a hora. Não alterámos o dia. Mas eu consegui um bilhete para ir neste voo que vai sair agora. Tem aqui o bilhete mas tem de ir já fazer o check-in, imediatamente."
Mixed feelings.
Agarrei no bilhete, e como não sou de rancores meti o braço pelo buraquinho do vidro do guichet, apertei-lhe a mão e disse "Muchas gracias señor! Muchas gracias!"
Corrida para o check-in. Entretanto liga-me o meu amigo.
"Não sei como, deve ter sido no meio da confusão, fiquei com o teu bilhete de identidade, só que o meu voo vai sair agora e o gate vai fechar..."
Sem bilhete de identidade não há check in para ninguém. Pois é.
"Vou deixar o bilhete de identidade com uma das senhoras que estão a fazer a segurança. É uma senhora um bocadinho forte, morena..."
Toca a correr as filas todas, em passo de maratona nos últimos cem metros, enquanto perguntava atabalhoadamente às calmeironas de pistola à cintura, todas fortes e morenas, qual delas é que tinha o meu bilhete de identidade. À quarta tentativa, bingo. Desafio superado.
Corro para o check in. Já fechou o guichet para o voo destinado a Lisboa, mas ouço, como que uma voz do além, "last call to Lisbon!"
"ME!! ME!! It's ME!!"
Foi o check in mais rápido da história. Passo de maratona outra vez, agora como se fossem os últimos 10 metros para o gate. Ainda aberto.
Desafio superado.
Entro no avião. Enterro-me na cadeira. Não preciso de música, tenho os ouvidos a zumbir fininho. Acesso de vergonha: e se me enganei mesmo a marcar a data de regresso...?
Tenho apenas mais uma coisa a acrescentar: a Vueling é a minha companhia aérea low cost preferida.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
2012: Odisseia nos transportes públicos
De há uns meses a esta parte voltei a frequentar o maravilhoso mundo dos transportes públicos. Diariamente percorro a magnífica cidade de Lisboa, de lés a lés and back, saltitando entre a Carris, a CP e o Metro.
É uma verdadeira aventura. Uma inspiração para o próximo filme de Indiana Jones. Ou para a série "The Walking Dead". Algo intermédio.
Há todo um ritual que precede o início da minha odisseia diária. Saio de casa com o passe em punho (viva o L1!), MP4 numa mão e cigarro na outra, e assim me entretenho durante a espera.
Eis que se avista a lagarta laranja e eu já pronta para esfregar o meu L1 numa das maquinetas estrategicamente mal colocadas à entrada do autocarro. Ainda estou para perceber porque raios colocam uma das maquinetas à frente do motorista e outra atrás, se só consegue entrar uma pessoa de cada vez. Resultado: quem é mais lento no procedimento do esfrega-o-passe, ou quem não o tem e precisa de comprar bilhete, acaba esmagado à frente do motorista pelas pessoas que avidamente procuram a maquineta colocada da parte de trás, para poderem "validar" o respectivo "título" de transporte.
Mas não se pode esfregar de qualquer maneira, não senhor: tem que ser delicada e pausadamente, qual maestro em dia de sinfonia, para que o sensível aparelho possa ler a informação magnética contida no colorido cartãozinho. Caso contrário leva-se com um desagradável piiii.
No autocarro vai-se em pé, que o tempo do percurso não justifica ir sentado. Também não me agarro a lado nenhum, que já treinei o equilíbrio. Imagino-me sempre em cima de uma prancha de surf a apanhar a onda da minha vida. Um dia que vá fazer uma aula, vão chamar-me um prodígio.
Chegada à paragem de destino, salto para a rua, em direcção à estação de comboio. Com isto já lá vão 10-15 minutos e 5 músicas ouvidas. Valha-me a minha diversificada playlist.
Uma vez mais, esfrego cuidadosamente o passe nas portinhas automáticas para a entrada na plataforma. Em hora de ponta, os comboios passam, em média, de seis em seis minutos. Todas as carruagens vão apinhadas, cheias de cheiro de gente semi-sonâmbula, ensimesmadas com os seus livros, jornais, headphones ou a olhar para o vazio bocejante.
É nessa altura que tento atingir uma janela com um olho e acerto num bocadinho do Tejo. Tudo o resto pode ser horrífico, mas aquele vislumbre é um privilégio. Espero que, ao menos durante uns breves milésimos de segundo, toda aquela gente consiga apreciar esse encanto.
Chegada ao meu destino, sigo no meio da carneirada para o metropolitano. Não sei se todos me seguem ou se sou eu que estou a seguir toda a gente. Prefiro nem pensar muito nisso. Nessa altura já passaram mais 20 minutos e a minha cabeça viaja na música que vou ouvindo, nas melodias e nas histórias cantadas que já sei de cor. Quando passa o "Englishman in New York" do Sting imagino-me de bengala a percorrer as ruas de Manhattan. A gentleman should walk but never run.
Esfrega-o-passe uma vez, desço dois lances de escadas, esfrega-o-passe outra vez. Alguns passageiros mais inexperientes, que ainda não dominam a técnica, estão que tempos a friccionar nervosamente o visor da portinhola, que nem assim se convence. E entretanto dezenas de pessoas acumulam-se em fila.
Malta: não friccionem. Não resulta. Aproximem o passe do visor, delicadamente como se fosse a última carta de um castelo de cartas. E voilà! Abrem-se as portinholas.
Malta: não friccionem. Não resulta. Aproximem o passe do visor, delicadamente como se fosse a última carta de um castelo de cartas. E voilà! Abrem-se as portinholas.
Regra geral, quando estou a chegar à plataforma do metro, acabou de arrancar um. Louvado será o dia em que comboio e metro se coordenam nos horários, facilitando a vida às dezenas de passageiros que utilizam essa ligação e, como eu, pagam cerca de 50€ de passe (ou mais) por ambos os meios de transporte. Melhor ainda seria aumentar a frequência dos mesmos. 4 minutos em hora de ponta é muito tempo. Especialmente para quem já vai com meia hora de viagem.
Chegado o comboio subterrâneo as gentes amontoam-se para tentar entrar primeiro, não vá o mono eléctrico fugir. Tanto calor humano. Tanto fedor urbano. Cotoveladas, cargas de ombro, pisadelas e encontrões. Entro no jogo para sobreviver e fixo-me num único objectivo: um lugar sentado. Parecemos zombies on speeds avistando carne fresca.
Volta e meia, na linha verde, entram os suspeitos do costume a pedir uma moedinha. São sempre os mesmos. Um deles - julgo que o mais popular - canta uma música meio hip-hop acompanhada por ritmos alucinantes feitos com a sua bengala e uma espécie baqueta que usa para contra-ritmo.
"Aaaa-gradece-se a quem tenha a bondade de m'auxiliareee".
Mudar de linha. Subir escadas. Mais carneirada. Mais música. Escadas rolantes avariadas (nunca as vi a funcionar). Cheiro a pão quente. Mais quatro minutos. Mais música. "Air Batucada" dos Thievery Corporation.
"(...) E eis que súbito o avisto fulgurante, na sua pompa e aérea formosura (...)", não o Palácio encantado da Ventura (obrigada Antero) mas a saída para o meu destino final.
Uma hora de viagem.
Venham agora falar-me de greves.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Roendo umas febras de coentrada na falésia
"Vamos dar uma volta este fim-de-semana? Vai estar um calorão..."
"E se fôssemos a Porto Covo?"
Foi quanto bastou. Sem mais nem ontem, desamarrando as desculpas, meti o fato de banho e as xanatas num saco, agarrei na minha amiga e rumámos à Costa Vicentina.
Não sei se existem praias tão bonitas como as que conheço em terras lusas. Para alguns pode parecer provincianismo, mas se é para estar de papo para o ar, a apanhar escaldões e a enterrar os pés na areia, que seja a ouvir "é fruta óóó chocolate" e a lambuzar-me com bolas de berlim e se possível com línguas da sogra. Não duvido que as águas quentes das Caraíbas ou os resorts das Maldivas sejam tentadoras, mas "línguas da sogra" em Dhivehi deve soar, no mínimo, a um grito de guerra.
Porto Covo é tão apetitoso que dá vontade de comer. As pequenas moradias cheias de branco e de cor fazem "pandam" com as ruelas calcetadas, salpicadas com areia. Cheira a Verão, a sal, a gargalhadas e a noites bem passadas. Vêem-se surfistas, rastas, jovens casais, crianças, avós, turistas e pescadores, sem que ninguém pareça deslocado.
Chegadas a este cenário idílico, já passava largamente da hora do jantar, não estivemos para modas e mandámos logo vir o belo do arroz de marisco que faria salivar o vegetariano mais radical. E que dose! Sobrou mais de metade. Perdi as vergonhas e mandei guardar o resto em tupperwares. Foi pena ter-me esquecido deles em cima da mesa, mas os regalos da gelataria d'"O Marquês", ali ao lado, invadiram-me repentinamente os pensamentos e ocuparam-me estômago.
Não obstante o farto repasto, ainda arranjei espaço para uma amarguinha com gelo e limão (cada vez mais o meu aperitivo/digestivo favorito), na companhia de um casal amigo que nos acolheu em sua casa com uma hospitalidade sem fronteiras. Anunciava-se um fim-de-semana em grande.
O dia seguinte começou com um pequeno almoço tardio e relaxante na pequena praceta que enche Porto Covo. Estava uma manhã particularmente bem-disposta, daquelas que nos fazem sorrir sem razão aparente e apreciar as pequenas coisas da vida que habitualmente damos por garantida. Um sumo de laranja fresco. O sol que nos abraça. A companhia de uma amiga de longa data. A paisagem partilhada.
O percurso até à praia foi feito a pé, naturalmente. O meu magnífico sentido de orientação equivalente ao de uma galinha sem cabeça levou-nos a trilhos por entre falésias, semeadas de cactos, pintadas com terra avermelhada e ribanceiras íngremes. Lindo, sem dúvida. Mas de havaianas não tem tanta graça. Só porque pode fugir um pé. Não fosse a minha amiga ainda andava por lá perdida entre dunas ou estatelada numa gruta.
A pequena aventura não foi em vão. A Praia Grande até pode ser a mais concorrida de Porto Covo, mas nem por isso deixa de ser encantadora e relaxante. Sem atropelos, sem gritarias, sem desconfortos. E aí sim, enterrei finalmente os pés na areia e senti-me verdadeiramente abençoada.
O resto do dia foi repleto de dolce fare niente e concluído com umas belas amêijoas à bulhão pato e uns camarões a la guilho regados com uma senhora imperial. A amarguinha com gelo e limão também não escapou. Não fosse o Lou Reed tão absolutamente melancólico a cantar o "Perfect Day", diria que essa era a melodia eleita para este dia.
No domingo acordámos pela fresquinha para conhecer a Praia do Malhão. É practicamente selvagem - não fossem os nadadores salvadores - e tem um areal sem horizonte definido. Do oceano emergem rochedos com desenhos apocalípticos, formando pequenas lagoas quando a maré vaza. É um lugar que inspira eternidade.
As bolachas e os pistacios que levámos não saciaram a fome entretanto acumulada e pela hora do almoço fomos tentar a sorte na Praia do Pessegueiro. Embora não tenha o charme virginal da Praia do Malhão, a Ilha do Pessegueiro confere àquela paisagem um toque cinematográfico, talvez sugerido pela história do Vizir de Odemira cantada por Rui Veloso.
Estive tentada a nadar até lá mas detive-me a tempo, não fosse o meu sentido de orientação pregar-me partidas e ainda ia acabar nas Américas ou, com sorte, nos Açores.
Mas a fome permanecia. O único estabelecimento comercial num raio de 10 km é o restaurante "A Ilha". Fiquei surpreendida por estar tão pouca gente no restaurante, na esplanada que oferecia uma paisagem bastante reconfortante, considerando, para mais, que era domingo à tarde.
"É a crise"
O menu do dia estava fixado cá fora, na esplanada. A intenção era só petiscar, para evitarmos a congestão no mergulho de despedida. Segundo aquele menu, havia choco frito, febras de coentrada e outros petiscos. Mas o pica pau não tinha preço, o que poderia querer dizer que não havia. Para quem não sabe (duvido que haja algum português - que se preze - que não saiba o que é), o pica-pau é composto por vários tipos de carne, bem cozinhada e temperada, às vezes ligeiramente picante.
A Senhora que nos atendeu, que supus ser a gerente do estabelecimento, disse-nos sim senhora que sim, que havia pica-pau. Oh maravilha! Venha o pica-pau e um pratinho com choco frito faz favor, a modos para a gente petiscar.
Eis se não quando nos servem um imponente prato de choco com arroz, batata e salada. Fiquei um pouco surpreendida e nem reparámos no outro prato que nos haviam servido. Chamei a Senhora e disse-lhe que tínhamos pedido apenas um pratinho com choco, que não queríamos nem arroz nem salada.
"Qual é a diferença? Vai pagar o mesmo! Mas se quiser vou lá dentro e tiro os acompanhamentos!"
Perante aquela lógica irredutível encolhi os ombros e cedi ao tradicional conformismo lusitano e à sua máxima de sempre: se é de borla, leva-se.
Quando prestei atenção ao outro prato e levei uma garfada à boca, apercebi-me que algo estava errado.
"Não tínhamos pedido pica-pau?"
"Sim... mas isso não parece pica-pau de facto"
"Pois não... isto sabe a coentros"
Eram as febras de coentrada. Ou outra coisa qualquer. Pica-pau é que não era. Até estavam boas e por isso, uma vez mais, abraçámos a resignação. Pelo menos durante uns minutos, até ser picada por uma vespa que me fez guinchar como uma macaca. Não foi bonito. A sorte é que ao meu lado estava uma senhora que me ensinou uma mezinha contra estes infortúnios: pressionar a picadela com uma moeda, preferencialmente de dois euros, durante um bocadinho. E resultou.
Não sei se por isso, ou simplesmente porque sim, quando a Senhora nos veio perguntar se precisávamos de mais alguma coisa, aproveitei para lhe dizer, educadamente, que o que nos tinha servido não era pica-pau.
"Ai isso é que era!"
"Não minha Senhora, isto eram febras de coentrada. Muito boas por sinal, mas febras de coentrada"
"É a mesma coisa!"
"Não é não minha Senhora"
"Então como é que a Menina faz as febras de coentrada lá na sua terra?"
Por momentos senti-me no Isto Só Visto e olhei em redor à procura de uma câmara escondida. Aposto que pensou que éramos umas tansas da cidade que não saberíamos distinguir porco de vaca. Era o que faltava. Saltou-me logo o orgulho das minhas costelas beirãs e ribatejanas.
"A Senhora tem os dois pratos no menu, deve saber melhor que eu... Mas tanto quanto sei o pica-pau é composto por vários tipos de carne e um molho ligeiramente picante..."
"Ai não, não, assim não sei fazer"
Percebi então porque é que o único restaurante num raio de 20 km ao pé da Ilha do Pessegueiro estava vazio. Fiquei verdadeiramente triste ao imaginar a quantidade de gente que esta atitude já não terá afugentado. Será pura ignorância ou simplesmente não querer ter trabalho?
O mais engraçado aconteceu quando pedimos a conta. Se estivesse descriminado "pica-pau" teríamos dito que não foi isso o servido. Se estivesse descriminado "febras de coentrada" estava a dar a mão à palmatória.
Mas nunca se deve duvidar do xico-espertismo português, nem do conceito geral e abstracto dos "diversos".
O resto do dia foi repleto de dolce fare niente e concluído com umas belas amêijoas à bulhão pato e uns camarões a la guilho regados com uma senhora imperial. A amarguinha com gelo e limão também não escapou. Não fosse o Lou Reed tão absolutamente melancólico a cantar o "Perfect Day", diria que essa era a melodia eleita para este dia.
No domingo acordámos pela fresquinha para conhecer a Praia do Malhão. É practicamente selvagem - não fossem os nadadores salvadores - e tem um areal sem horizonte definido. Do oceano emergem rochedos com desenhos apocalípticos, formando pequenas lagoas quando a maré vaza. É um lugar que inspira eternidade.
As bolachas e os pistacios que levámos não saciaram a fome entretanto acumulada e pela hora do almoço fomos tentar a sorte na Praia do Pessegueiro. Embora não tenha o charme virginal da Praia do Malhão, a Ilha do Pessegueiro confere àquela paisagem um toque cinematográfico, talvez sugerido pela história do Vizir de Odemira cantada por Rui Veloso.
Estive tentada a nadar até lá mas detive-me a tempo, não fosse o meu sentido de orientação pregar-me partidas e ainda ia acabar nas Américas ou, com sorte, nos Açores.
Mas a fome permanecia. O único estabelecimento comercial num raio de 10 km é o restaurante "A Ilha". Fiquei surpreendida por estar tão pouca gente no restaurante, na esplanada que oferecia uma paisagem bastante reconfortante, considerando, para mais, que era domingo à tarde.
"É a crise"
O menu do dia estava fixado cá fora, na esplanada. A intenção era só petiscar, para evitarmos a congestão no mergulho de despedida. Segundo aquele menu, havia choco frito, febras de coentrada e outros petiscos. Mas o pica pau não tinha preço, o que poderia querer dizer que não havia. Para quem não sabe (duvido que haja algum português - que se preze - que não saiba o que é), o pica-pau é composto por vários tipos de carne, bem cozinhada e temperada, às vezes ligeiramente picante.
A Senhora que nos atendeu, que supus ser a gerente do estabelecimento, disse-nos sim senhora que sim, que havia pica-pau. Oh maravilha! Venha o pica-pau e um pratinho com choco frito faz favor, a modos para a gente petiscar.
Eis se não quando nos servem um imponente prato de choco com arroz, batata e salada. Fiquei um pouco surpreendida e nem reparámos no outro prato que nos haviam servido. Chamei a Senhora e disse-lhe que tínhamos pedido apenas um pratinho com choco, que não queríamos nem arroz nem salada.
"Qual é a diferença? Vai pagar o mesmo! Mas se quiser vou lá dentro e tiro os acompanhamentos!"
Perante aquela lógica irredutível encolhi os ombros e cedi ao tradicional conformismo lusitano e à sua máxima de sempre: se é de borla, leva-se.
Quando prestei atenção ao outro prato e levei uma garfada à boca, apercebi-me que algo estava errado.
"Não tínhamos pedido pica-pau?"
"Sim... mas isso não parece pica-pau de facto"
"Pois não... isto sabe a coentros"
Eram as febras de coentrada. Ou outra coisa qualquer. Pica-pau é que não era. Até estavam boas e por isso, uma vez mais, abraçámos a resignação. Pelo menos durante uns minutos, até ser picada por uma vespa que me fez guinchar como uma macaca. Não foi bonito. A sorte é que ao meu lado estava uma senhora que me ensinou uma mezinha contra estes infortúnios: pressionar a picadela com uma moeda, preferencialmente de dois euros, durante um bocadinho. E resultou.
Não sei se por isso, ou simplesmente porque sim, quando a Senhora nos veio perguntar se precisávamos de mais alguma coisa, aproveitei para lhe dizer, educadamente, que o que nos tinha servido não era pica-pau.
"Ai isso é que era!"
"Não minha Senhora, isto eram febras de coentrada. Muito boas por sinal, mas febras de coentrada"
"É a mesma coisa!"
"Não é não minha Senhora"
"Então como é que a Menina faz as febras de coentrada lá na sua terra?"
Por momentos senti-me no Isto Só Visto e olhei em redor à procura de uma câmara escondida. Aposto que pensou que éramos umas tansas da cidade que não saberíamos distinguir porco de vaca. Era o que faltava. Saltou-me logo o orgulho das minhas costelas beirãs e ribatejanas.
"A Senhora tem os dois pratos no menu, deve saber melhor que eu... Mas tanto quanto sei o pica-pau é composto por vários tipos de carne e um molho ligeiramente picante..."
"Ai não, não, assim não sei fazer"
Percebi então porque é que o único restaurante num raio de 20 km ao pé da Ilha do Pessegueiro estava vazio. Fiquei verdadeiramente triste ao imaginar a quantidade de gente que esta atitude já não terá afugentado. Será pura ignorância ou simplesmente não querer ter trabalho?
O mais engraçado aconteceu quando pedimos a conta. Se estivesse descriminado "pica-pau" teríamos dito que não foi isso o servido. Se estivesse descriminado "febras de coentrada" estava a dar a mão à palmatória.
Mas nunca se deve duvidar do xico-espertismo português, nem do conceito geral e abstracto dos "diversos".
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
Estive para ganhar o euromilhões,
mas em vez disso ganhei juízo. Duas vezes.
Há dias em que me dava jeito ter cinco mãos, sete pés e noventa e duas horas. Como não me conformo com a minha compungente condição espacio-temporalmente limitada, resolvo fazer tudo ao mesmo tempo. É esta a miserável desculpa que apresento ao meu culpado ego por ter atendido o telemóvel enquanto conduzia.
Infelizmente o Senhor Agente não se comoveu com a mesma facilidade.
"A Senhora Condutora ia muito distraída..."
"Pois ia Senhor Agente...", disse candidamente, enquanto preparava uma lágrima.
"Estivemos parados ao seu lado no semáforo quando atendeu o telefone. Só faltou bater-lhe no vidro".
O semáforo tinha ficado há 10 minutos atrás. Não tinha alternativa - a lágrima tinha de saltar com urgência.
"Oh Senhor Agente, peço imensa desculpa!" [soluço, olhos esbugalhados] "Foi uma emergência!" [soluço, testa franzida] "Nunca faço estas coisas" [soluço soluço, mão na testa, soluço] "Foi uma vez sem exemplo" [soluço, lágrima, beicinho, lágrima, beicinho].
Respirei fundo e repeti a dose. Aproveitei para lhe ver o nome na lapela e comecei a tratá-lo pela sua graça, a ver se o amanteigava.
"Vou ter que a autuar, não há mesmo maneira de dar a volta a isto."
Xiça. Já não há cavalheiros. Exausta do choramingo, que não me estava a levar a lado nenhum, perguntei-lhe quanto é que era a multa.
"120 euros."
Se me tivessem dado com um escafandro nos dentes teria doído menos. Saltaram-me as lágrimas sem licença. Chorei com tal vontade que me faltou o ar, qual Alma perdida, como se a minha inteira existência passada, futura e póstuma dependesse da misericórdia do Senhor Agente.
"Ó Senhor Agente Jerónimo... [nome fictício]" ainda balbuciei, com as mãos unidas em oração, com muitas fungadelas suplicadas. Nem consegui terminar a frase, tal era o meu estado de prostração.
Nada. Nem uma abébia. Nem um desconto.
Que saudades de Angola.
Desconsolada e de papel químico na mão, lá segui caminho, enxugando as lágrimas (agora genuínas), orquestrando mentalmente a criativa impugnação que ia apresentar em minha defesa. Valha-me a justiça portuguesa.
Até aqui nada de transcendente: é a história de mais uma vítima da sua própria estupidez.
O dia seguinte era sexta-feira. Picado o ponto de saída, esperava-me uma noite em grande: teatro, petiscos, imperiais e, quem sabe, um pezinho de dança.
E assim foi, sem alarmes nem surpresas. Regalada com o serão, pedi boleia para casa a uma amiga minha no final da noite.
Navegando calmamente pela estrada fora, um aglomerado de luzes, carros e agitação atabalhoada surpreendeu-nos quase a chegar a casa. Era uma operação STOP.
"Olha em frente como se não fosse nada contigo."
Mesmo que não fosse, passou a ser. Um dos Senhores Agentes escolheu-nos (aleatoriamente) para uma pequena conversa. Ambas sentimos um ligeiro calafrio - quem não treme perante o esbracejar da autoridade?
"Boa noite Senhora Condutora".
Desta vez não era eu. Senti-me cobardemente aliviada. Depois das apresentações e exibição dos devidos documentos, veio a pergunta fatal,
"A Senhora Condutora ingeriu bebidas alcoólicas?"
A minha amiga estava a beber água há quase duas horas, mas antes disso havia sucumbido a dois pecados.
"Sim, Senhor Agente. Bebi duas caipirinhas."
"E de certeza que, para manter a linha, não comeu nada...?"
"Ihihihi"
Até àquele momento estava a correr bem. O pior foi quando a minha amiga, que soprava no balão pela primeira vez na vida, obrigou o Senhor Agente a repetir o teste quatro vezes.
"NÃO É ASSIM - inspire até ao fim e EXPIRE com força para dentro do tubo!"
Funesta expiração que fez apitar a maquineta dos infernos!
250 euros de multa. Saltou-me a tampa.
"Oh Senhor Agente, pelo amor de Deus, ainda ontem fui autuada!! Será possível???"
"E foi autuada porquê?"
"Vinha a conduzir e a falar ao telemóvel..."
"E NÃO SE RECORDA DE MIM?"
Era o mesmo Agente. O mesmo Agente Jerónimo. À minha saúde. Em zona e horário diferente. Era coisa do diabo. Dos diabos.
"Não vai começar a chorar agora pois não?"
"Claro que não Senhor Agente, mas veja lá esta situação, dois dias seguidos... "
"Vamos esperar um bocadinho e já cá volto."
A minha amiga bebeu toda a água que havia no carro, só faltou ir ao recipiente do mija-mija. O certo é que os céus ouviram as nossas preces e o resultado do teste final já escapava à contra-ordenação.
Em jeito de despedida, disse-lhe a minha amiga "Obrigada Senhor Agente!"
"Obrigada não, isto tudo se paga..."
Arre. Por esta é que não esperava.
terça-feira, 4 de setembro de 2012
As ratazanas do ar.
Se há criatura que (infelizmente) é completamente invulnerável às intempéries da crise é o pombo. É pior que a barata, que a traça, que a pulga, que a formiga ou que a Troika. É uma autêntica praga nacional, vivida com particular intensidade na cidade de Lisboa.
Não pode ter passado despercebido a ninguém o excesso demográfico desta espécie de entulho voador. É sinónimo de poluição, sujidade, desleixo e porcaria. Sem mais, simplesmente porcaria.
O pombo é o único ser que verdadeiramente me repugna. O único ser que consegue arrancar-me palavras de ódio e gestos de ira descontrolada. Nem categoria de animal merece, é uma miserável desculpa de existência. E não morrem, os sacanas. A malta queixa-se que o pão está caro, mas pelos vistos os senhores pombos, anafadinhos como andam, devem ter entregas especiais vindas de Mafra.
Não pode ter passado despercebido a ninguém o excesso demográfico desta espécie de entulho voador. É sinónimo de poluição, sujidade, desleixo e porcaria. Sem mais, simplesmente porcaria.
O pombo é o único ser que verdadeiramente me repugna. O único ser que consegue arrancar-me palavras de ódio e gestos de ira descontrolada. Nem categoria de animal merece, é uma miserável desculpa de existência. E não morrem, os sacanas. A malta queixa-se que o pão está caro, mas pelos vistos os senhores pombos, anafadinhos como andam, devem ter entregas especiais vindas de Mafra.
Eu sei que não estou sozinha. Eu sei que há muito boa gente que oculta esta raiva animalesca pelas inefáveis criaturas, que guarda com vergonha um rancor indomável e uma louca vontade de estrafegar os seus pescocinhos pestilentos.
Engordam à custa de restos de carcaças distribuídos por quem não tem noção da verdadeira natureza destes monstros voadores. Além de portadores e transmissores de doenças contagiosas - como a raiva - propagam a imundice com bombas atómicas provenientes da sua "bazuca anal" (já diziam os saudosos "Mamonas Assassinas").
Carecas distraídas, almoços no Terreiro do Paço, carros novos ou com pinturas renovadas e qualquer estátua, monumento ou mastro erigido em nome da grandeza e sublimidade nacional são as tradicionais vítimas do flagelo causado por aquele ácido pastoso que é inversamente vomitado.
Ninguém está descansado. Eu atravesso sempre o Rossio a correr desalmadamente, não vá ser abençoada com uma suprema cagadela entre o Nicola e o Teatro D. Maria.
É hora minha gente. É hora de acabar com os pombos. Chega de toilettes arruinadas, de capôs queimados, de almoços temperados, de gelados com toppings especiais, de estátuas com cabeleiras viscosas e de monumentos grafitados por caca. Para quem não saiba, a lei (desta vez) está do nosso lado: em Lisboa, alimentar pombos em via pública é proibido e dá multa que pode ir até cem euros.
Por isso, da próxima vez que vir alguém lançar a mão com migalhitas para estes seres do inferno chamo a polícia. Raios, é que chamo a Europol se for preciso. E a TVI. A RTP também, que afinal de contas isto é um serviço público. Pode ser que venha a Catarina Furtado e tudo.
Tenho a certeza que há muita gente a pensar como eu. Diria mais: se em vez de touradas fossem "pombadas" não faltariam olés e seriam todas de morte.
A única advertência que tenho a fazer é o perigo de confusão entre pombos e rolas. Até podem ser fisionomicamente parecidos, mas comportam-se de maneira diametralmente oposta: são asseadas, respeitadoras e leais. Cuidam dos seus ninhos, da sua higiene, são reservadas e prezam a amizade.
Aqui há tempos apareceram-me umas quantas no beiral da janela da cozinha. Assustavam-se cada vez que tentava abrir a janela para lhes dar arroz, mas com o tempo foram vencendo a desconfiança, até que se tornou num quotidiano enternecedor. Agora, sempre à mesma hora pela manhã, lá aparecem como que a pedir um grãozinho "se faz favor". Sinto-me num livro de Saint Exupery.
Estive uns dias fora e julguei que teriam debandado, cansadas da demora, à procura de melhores colheitas. Afinal de contas, quanto tempo se deve esperar por um punhado de arroz?
No dia seguinte ao meu regresso, acordei e ainda em camisa de noite espreitei pela janela para a gigantesca árvore que as alberga. Não foi preciso um minuto para virem pousar no beiral da janela da minha cozinha, como dantes. Até parecia que tinham saudades. De mim ou do punhado de arroz.
Aqui há tempos apareceram-me umas quantas no beiral da janela da cozinha. Assustavam-se cada vez que tentava abrir a janela para lhes dar arroz, mas com o tempo foram vencendo a desconfiança, até que se tornou num quotidiano enternecedor. Agora, sempre à mesma hora pela manhã, lá aparecem como que a pedir um grãozinho "se faz favor". Sinto-me num livro de Saint Exupery.
Estive uns dias fora e julguei que teriam debandado, cansadas da demora, à procura de melhores colheitas. Afinal de contas, quanto tempo se deve esperar por um punhado de arroz?
No dia seguinte ao meu regresso, acordei e ainda em camisa de noite espreitei pela janela para a gigantesca árvore que as alberga. Não foi preciso um minuto para virem pousar no beiral da janela da minha cozinha, como dantes. Até parecia que tinham saudades. De mim ou do punhado de arroz.
(uma das rolas que assentou no beiral da janela da cozinha)
De vez em quando aventura-se um pombo, a fingir que disfarça no meio delas. Leva logo uma chinelada.
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Validade ilimitada
Desde tenra idade que tenho grande apreço pelo conforto de um leite quente com mokambo e açúcar antes de ir para a cama. Não é um hábito frequente (cada vez menos porque me briga com o estômago), mas ainda me sabe bem naquelas noites que acabam tarde e com um ligeiro ronronar na barriga.
Numa dessas noites, já com o leite a fervilhar e a mistura solúvel a tingir a caneca, dei com o açucareiro vazio. Rai's parta - é toda uma rotina que se quebra. E eu, que adoro rotinas - a mecânica da memória dá-me liberdade ao pensamento. É surpreendente o que se descobre enquanto se lava os dentes. Com o sobrolho levantado, interrompi a meditação e arrastei-me até à despensa. Entre a farinha e o óleo lá encontrei o presunçoso pacote de papel na segunda prateleira a contar de baixo. Agarrei no tijolo doce e, contra o que é habitual na minha pessoa, procurei a data de validade.
(já começa a ser altura de inventar um molde ergonómico para aqueles monos, que mais parecem o meu porta-moedas no final do mês)
Revirei três vezes o inchado embrulho e eis se não quando me apercebi que o açúcar - ou pelo menos aquele pacote - não tinha validade. Na parte em que se lê "consumir de preferência antes de" estava escrito validade ilimitada. Senti um misto de espanto, euforia e constatação da minha própria imbecilidade.
Portanto, o açúcar é imperecível? Sou a última pessoa do mundo a saber isto? Nem quero imaginar até onde vai a minha ignorância.
Muito francamente, foi uma descoberta que me deixou feliz. Ou pelo menos que me fez sorrir e voltar à minha rotina. Hoje em dia, em que tudo é descartável, efémero e passageiro, há pelo menos um elemento na nossa vida que nunca se estraga, nunca apodrece, nunca perde qualidades, independentemente do tempo que tenha passado. O açúcar é um amigo para a vida - desde que não ingerido.
Vou resistir às metáforas óbvias e às analogias fáceis que se podem desenvolver a partir da imperecibilidade do açúcar directamente para o nosso quotidiano e para os nossos relacionamentos - acho que é um exercício pessoal que deve ficar para cada um de nós.
Mas por favor, quando eu morrer, cubram-me de açúcar.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Adoro
esta crise. Adoro a Lehman Brothers, os toxic assets, o Sócrates, o défice, a dívida pública, a Troika, a Angela Merkel, o desemprego, o (des)crédito e por aí a fora. Apetece-me abraçá-los a todos muito abraçadinhos, muito apertadinhos, muito aconchegadinhos até ficarem roxinhos roxinhos a espichar cérebro pelo nariz (ou o que raio houver naquelas cabeças). Sim, porque os toxic assets também têm nariz (daqueles aduncos e verrucosos) e se não tiverem invento-lhes um só para ter este prazer.
Também adoro a comunicação social. Estas verborreias noticiárias que só nos fazem sentir ainda mais pena de nós próprios. Cada Português já tem um Velho do Restelo dentro de si quando nasce. É-nos infundido um fenótipo saudosista, melancólico e pessimista no momento da concepção, uma espécie de pack "Alma + Velho do Restelo" pelo preço de um. Aproveitámos a promoção divina nas épocas áureas. Não é preciso qualquer ajuda para a fustigação mental.
Ainda ontem numa reportagem da TVI perguntava-se aos utentes dos transportes públicos o que achavam do aumento dos passes sociais. O que acham? O QUE É QUE HAVERIAM DE ACHAR?
"Ai não, eu ADORO pagar mais pelo mesmo serviço. Se há coisa que eu gosto é de pagar mais para ficar exactamente como antes. Aumentem-me os preços e fazem-me uma pessoa feliz..." Rai's parta tanta idiotice.
Mas se há coisa que adoro MESMO são as greves. Uiiii! Pelo-me toda por uma greve daquelas. Dá-me vontade de abraçar os sindicatos, as uniões sindicais, os trabalhadores aderentes e arrancar-lhes a cabeça à dentada. E mastigar bem, para não causar indigestão.
Devem ter sofrido uma lobotomia frontal quando eram pequeninos. Só pode ser. Não há outra forma de explicar porque é que não têm consciência que perdem mais do que ganham. Não há dinheiro. Vou repetir: não há dinheiro. Não há dinheiro para os subsídios, para os aumentos de salário, para mais benefícios sociais, para as horas extraordinárias ou para o que quer que inventem que precisam.
Têm emprego? Sorte a vossa. Parem de prejudicar ainda mais o País. Cada dia de greve (seja qual for o sector) causa MILHÕES de euros de prejuízo, não só ao sector como à economia nacional num todo. Dinheiro que serve exactamente para vos manter nesse emprego.
Que tal pararmos todos de apontar o dedo? De enxotarmos a responsabilidade aos políticos e aos governos (que mais não são a expressão da irresponsabilidade invidual de cada um) e olharmos para o nosso exemplo? Quantos não viveram acima das possibilidades? Quantos não pediram empréstimos, créditos ao consumo, hipotecaram casas, carros, o futuro dos nossos filhos só para parecerem que têm mais do que na realidade têm? É altura de parar com a hipocrisia e a cobardia e assumirmos, individualmente, a nossa quota parte de responsabilidade.
E se o estado das coisas leva a decisões governamentais pouco humanizantes, compete-nos a nós, a cada cidadão, humanizar a sociedade. Morrem idosos sozinhos em casa e ninguém dá por isso. É nossa responsabilidade enquanto seres humanos, independentemente da cor política, religião ou nacionalidade, prevenir essa hecatombe. É em alturas de crise que se manifesta o melhor e o pior de uma sociedade. De que lado queremos estar?
De resto, já estou fartinha fartinha de ouvir falar neste assunto. Até porque é uma constante na sociedade portuguesa. Começou com a crise de 1383-1385, período em que não houve nem Rei nem roque. Diz-se que acabou em 1385, mas a mim parece-me que ainda perdura...
Da minha parte, só tenho um apelo a fazer às entidades governamentais: leiam "O Príncipe" de Maquiavel. Aliás, todos deveríamos lê-lo.
Este País é um colosso!
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Foi a ASAE
Que encerrou o blogue durante todo este tempo por falta de condições fito-sanitárias.
Já está desratizado, desparasitado e vai voltar às banalidades de sempre.
Já está desratizado, desparasitado e vai voltar às banalidades de sempre.
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Santo António já se acabou
Não há nada como acordar com o cabelo a cheirar a sardinha assada num quarto impregnado de odor a sangria.
As festividades referentes aos Santos Populares em Lisboa já lá vão há umas semanas e entretanto já acumulei uma série de episódios engraçados, merecedores de descrição detalhada e exaustiva, mas há que respeitar uma certa cronologia dos acontecimentos.
Nunca fui muito dada a multidões embriagadas, encontrões, chuvas de cerveja e música pimba (individual ou simultaneamente considerados) mas desde que fui a Pádova o ano passado em Agosto e trouxe comigo uma cruz de Santo António ao peito, benzida em plena Basílica, que Lhe guardo um certo carinho e reverência.
Não sei se por esse motivo (desconfio que não) este ano submeti-me a uma injecção de Santos Populares de tal ordem que até hoje acordo com o "Pai da Criança" no ouvido e um leve perfume de febra grelhada.
Digam o que disserem é um evento transversal na sociedade lisboeta: vêem-se todas as idades e todas as "classes sociais". Desdentados ou com nariz arrebitado, todos eles dançam ao som do "Mestre da Culinária", abanam as ancas temerariamente na esperança de encontrar espaço para uma pirueta condigna, enquanto cantam alegremente, sem enganar numa vírgula - toda a gente sabe a letra de cor.
Saltam mangericos e reco-recos, as flores, luzes, cores e enfeites de papel dão à cidade de Lisboa ainda mais cor e alegria, especialmente depois do sol se por. É como se o FMI nem existisse (panus et circensis, já dizia o outro). As ruelas de Alfama e os seus esconderijos fumarentos, a íngreme Bica com os seus páteozinhos improvisados, enchem-se de gente que dança, que bebe, que se abraça e que se ri numa felicidade contagiante. Este ano estive lá. Qual Rock in Rio! Os Santos é que é.
Encontram-se pessoas inesperadas, velhos amigos, novas coincidências e entre sorrisos e entremeadas, mais um pezinho de dança uma "mine" a acompanhar, emolduram-se saborosas lembranças que ficarão para sempre na parede da nossa memória.
A ver se compro um mangerico.
quinta-feira, 9 de junho de 2011
A culpa é das portas giratórias.
Não sei de quem foi a ideia peregrina mas Lisboa está infestada com portas giratórias. São uma autêntica praga, tão má ou pior ainda que os pombos raivosos que ameaçam vorazmente as estátuas centenárias da capital e as carecas mais distraídas. São verdadeiros snipers da imundice e das doenças infecto-contagiosas. Qual macacos qual quê, os pombos foram os verdadeiros mensageiros da SIDA. Mas adiante.
Espanta-me que ainda ninguém tenha tido a coragem de questionar a real utilidade desse pseudo-sintoma de modernidade. Diz que nos países de clima muito frio ou muito quente servem para isolar a temperatura dos edifícios. Ou então para dissuadir os larápios mais desesperados. Ladrão que se preze planeia uma fuga razoavelmente eficaz, especialmente se de arma em punho e apetrechado de valores, enquanto um alarme grita desesperadamente. Confrontado com uma porta giratória em plena correria escapatória, um pobre ladrão mais não pode fazer que aguardar pela "sua vez", hesitantemente (como se fosse para saltar à corda) e depois caminhar compassadamente em sentido circular até chegar finalmente à saída. Quando se libertasse desse calvário electro-mecânico já teria seguramente alguém fardado à sua espera.
Mas Lisboa está longe de ser uma cidade de climas extremos e os assaltos hoje em dia fazem-se pela internet (já não há criminosos como antigamente). Nada explica a proliferação dessas artimanhas enfadonhas.
São um verdadeiro convite ao acidente. Primeiro, aquela hesitação inicial - "será que é a minha vez? arrisco? se calhar dou uma corridinha" - depois de entrar (se formos suficientemente dinâmicos), passamos àquele andar de procissão sem Santo, muitas vezes esmagados entre desconhecidos, rezando que acabe tudo depressa, que ninguém nos pise, nem tropece, nem recue; finalmente quando se sai, há que ter cuidado para não ficar com o pé de trás entalado (as sacanas das portas são traiçoeiras).
Não estou a exagerar. Quem ainda não esbarrou com a testa chapada no vidro da frente por se ter antecipado à velocidade da rotação? Quem ainda não tropeçou enquanto caminhava placidamente entre portas e temeu pela sua vida face à possibilidade de ser albarroado inadvertidamente por trás? Quem ainda não ficou entalado? E preso? E ter de aturar conversas privadas de desconhecidos durante os cinco segundos mais longos da história? E frustrado por ter uma reunião dali a trinta segundos e estar impedido de dar passos largos sem partir um vidro ou pontapear alguém?
No início temia essas portas. Entrar sem me magoar e sair com vida era o meu objectivo. Hoje em dia não lhes tenho qualquer respeito. Até as empurro com as mãos se for necessário (sou capaz disso e de muito pior).
A quantidade gente que eu já pisei e as trombadas que já dei entre portas giratórias poderiam dar azo a indemnizações milionárias, vivesse eu nos Estados Unidos da América.
Eu caminho depressa. Sempre caminhei. Caminhar devagar nunca me deu gozo algum, nem sequer a passear à beira-mar (mas que bela rima). Prefiro chegar o mais depressa possível ao destino, onde quer que seja, sentar-me e apreciar a vista. Nem para ver montras abrando. Ora, as portas giratórias são os antípodas deste conceito. E o pior é que parece que há pessoas que gostam da lenga-lenga rotativa. "Mais uma chapinha, mais uma voltinha". Quase que aposto que se pudessem ficavam horas e horas às voltas, tal é a alegria de entrar para o cilindro mágico. No fundo, é uma desculpa para não irem trabalhar, mais uns segundinhos a fazer tempo. Preguiçosos. As portas giratórias são um hino à preguiça. Por isso é que este País está no estado em que está.
Se há males na sociedade portuguesa são as portas giratórias. Acabem com elas.
sexta-feira, 27 de maio de 2011
Não preciso de muito.
Há dias entrei numa das mais antigas pastelarias de Lisboa para comprar tabaco. Faço sempre uma certa cerimónia quando entro numa pastelaria só para comprar tabaco. É como pedir só um copo de água. Nunca me foi recusado (o tabaco, entenda-se, não tenho assim tanta lata), mas fico sempre com aquela sensação de que estou a abusar da boa vontade dos empregados. Não damos a ganhar nada à casa e ainda roubamos o precioso tempo do staff, que poderia estar a satisfazer os desejos requintados dos clientes gastadores e lucrativos.
Desde que inventaram aquelas máquinas de tabaco com comandos à distância ridículos a coisa ficou ainda mais absurda. É como se tivesse de pedir autorização ao "senhor do café" para fumar. E alguns ainda me dão aquele olhar do "tem a certeza?" Arre gaita, pois claro que tenho, aperte lá o botãozinho do comando, fachavor, para poder introduzir as moedinhas e exercer plenamente o meu livre arbítrio constitucionalmente protegido. Sem moralismos, já agora, que isso de ser moralista já está démodé.
Por este andar, qualquer dia é preciso uma declaração de idoneidade para comprar uma carteira de fósforos.
Por este andar, qualquer dia é preciso uma declaração de idoneidade para comprar uma carteira de fósforos.
A máquina estava distante do balcão e eu desesperadamente procurava o contacto visual de um dos empregados, atarefados na sua lufa-lufa, sem me aproximar muito da montra farta de bolos, salgados, miniaturas e sandes de panado. Não querendo induzir ninguém em erro nas minhas reais intenções, mantive-me a meio caminho entre o tentador balcão e a dita máquina na esperança que fosse suficiente para ser entendida.
Levanto o braço envergonhadamente.
"Olhe, desculpe..."
Nada.
"Sai uma bica!"
Olho para o outro empregado como se precisasse verdadeiramente de um copo de água. Ninguém me iria deixar morrer à sede.
"Olhe, se faz favor..."
Contacto visual. Estava safa.
"Podia..."
E aponto com o polegar para a máquina que estava atrás de mim, assumindo que estava a ser inteiramente compreendida. Descansei quando vi o "senhor do café" a retirar o comando do prego onde se encontrava pendurado.
Fez-me um olhar poderoso.
Fez-me um olhar poderoso.
"Podia mostrar-me o seu bilhete de identidade?"
Embasbaquei-me. Estava de fato e de facto embasbacada.
"Vá, desta vez passa..."
Não preciso de muito para sorrir.
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