mas em vez disso ganhei juízo. Duas vezes.
Há dias em que me dava jeito ter cinco mãos, sete pés e noventa e duas horas. Como não me conformo com a minha compungente condição espacio-temporalmente limitada, resolvo fazer tudo ao mesmo tempo. É esta a miserável desculpa que apresento ao meu culpado ego por ter atendido o telemóvel enquanto conduzia.
Infelizmente o Senhor Agente não se comoveu com a mesma facilidade.
"A Senhora Condutora ia muito distraída..."
"Pois ia Senhor Agente...", disse candidamente, enquanto preparava uma lágrima.
"Estivemos parados ao seu lado no semáforo quando atendeu o telefone. Só faltou bater-lhe no vidro".
O semáforo tinha ficado há 10 minutos atrás. Não tinha alternativa - a lágrima tinha de saltar com urgência.
"Oh Senhor Agente, peço imensa desculpa!" [soluço, olhos esbugalhados] "Foi uma emergência!" [soluço, testa franzida] "Nunca faço estas coisas" [soluço soluço, mão na testa, soluço] "Foi uma vez sem exemplo" [soluço, lágrima, beicinho, lágrima, beicinho].
Respirei fundo e repeti a dose. Aproveitei para lhe ver o nome na lapela e comecei a tratá-lo pela sua graça, a ver se o amanteigava.
"Vou ter que a autuar, não há mesmo maneira de dar a volta a isto."
Xiça. Já não há cavalheiros. Exausta do choramingo, que não me estava a levar a lado nenhum, perguntei-lhe quanto é que era a multa.
"120 euros."
Se me tivessem dado com um escafandro nos dentes teria doído menos. Saltaram-me as lágrimas sem licença. Chorei com tal vontade que me faltou o ar, qual Alma perdida, como se a minha inteira existência passada, futura e póstuma dependesse da misericórdia do Senhor Agente.
"Ó Senhor Agente Jerónimo... [nome fictício]" ainda balbuciei, com as mãos unidas em oração, com muitas fungadelas suplicadas. Nem consegui terminar a frase, tal era o meu estado de prostração.
Nada. Nem uma abébia. Nem um desconto.
Que saudades de Angola.
Desconsolada e de papel químico na mão, lá segui caminho, enxugando as lágrimas (agora genuínas), orquestrando mentalmente a criativa impugnação que ia apresentar em minha defesa. Valha-me a justiça portuguesa.
Até aqui nada de transcendente: é a história de mais uma vítima da sua própria estupidez.
O dia seguinte era sexta-feira. Picado o ponto de saída, esperava-me uma noite em grande: teatro, petiscos, imperiais e, quem sabe, um pezinho de dança.
E assim foi, sem alarmes nem surpresas. Regalada com o serão, pedi boleia para casa a uma amiga minha no final da noite.
Navegando calmamente pela estrada fora, um aglomerado de luzes, carros e agitação atabalhoada surpreendeu-nos quase a chegar a casa. Era uma operação STOP.
"Olha em frente como se não fosse nada contigo."
Mesmo que não fosse, passou a ser. Um dos Senhores Agentes escolheu-nos (aleatoriamente) para uma pequena conversa. Ambas sentimos um ligeiro calafrio - quem não treme perante o esbracejar da autoridade?
"Boa noite Senhora Condutora".
Desta vez não era eu. Senti-me cobardemente aliviada. Depois das apresentações e exibição dos devidos documentos, veio a pergunta fatal,
"A Senhora Condutora ingeriu bebidas alcoólicas?"
A minha amiga estava a beber água há quase duas horas, mas antes disso havia sucumbido a dois pecados.
"Sim, Senhor Agente. Bebi duas caipirinhas."
"E de certeza que, para manter a linha, não comeu nada...?"
"Ihihihi"
Até àquele momento estava a correr bem. O pior foi quando a minha amiga, que soprava no balão pela primeira vez na vida, obrigou o Senhor Agente a repetir o teste quatro vezes.
"NÃO É ASSIM - inspire até ao fim e EXPIRE com força para dentro do tubo!"
Funesta expiração que fez apitar a maquineta dos infernos!
250 euros de multa. Saltou-me a tampa.
"Oh Senhor Agente, pelo amor de Deus, ainda ontem fui autuada!! Será possível???"
"E foi autuada porquê?"
"Vinha a conduzir e a falar ao telemóvel..."
"E NÃO SE RECORDA DE MIM?"
Era o mesmo Agente. O mesmo Agente Jerónimo. À minha saúde. Em zona e horário diferente. Era coisa do diabo. Dos diabos.
"Não vai começar a chorar agora pois não?"
"Claro que não Senhor Agente, mas veja lá esta situação, dois dias seguidos... "
"Vamos esperar um bocadinho e já cá volto."
A minha amiga bebeu toda a água que havia no carro, só faltou ir ao recipiente do mija-mija. O certo é que os céus ouviram as nossas preces e o resultado do teste final já escapava à contra-ordenação.
Em jeito de despedida, disse-lhe a minha amiga "Obrigada Senhor Agente!"
"Obrigada não, isto tudo se paga..."
Arre. Por esta é que não esperava.
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