sábado, 26 de março de 2011

O que ainda não tinha contado

A minha estadia em Luanda foi inaugurada com um episódio memorável. Houve muitos, a maior parte já exaustivamente relatados por estas bandas. Mas este específico episódio manteve-se oculto da blogosfera até hoje para impedir sobressaltos por quem me seguia ao longe. E para impedir que os meus Pais enviassem uma comitiva de resgate em minha busca, criando um incidente diplomático. Não tenho dúvidas que se barricariam na Embaixada de Angola em Lisboa até serem ouvidos por José Eduardo dos Santos e o convencerem a mandar as suas tropas de elite para me resgatarem. E ai de alguém que se metesse no caminho.

Como Portugal já se encontra, neste momento, a braços com a sua própria sobrevivência, achei melhor evitar o constrangimento internacional e optei por lhes contar só no dia do meu regresso, sã e salva.

No dia seguinte à minha chegada, depois de um inesperado convite para participar num alambamento (uma espécie de festa de noivado), resolvemos dar um pezinho de dança numa discoteca próxima.

Estava acompanhada por mais duas moças e um cavalheiro, o condutor, que nos aconselhou a deixar as malas no carro. Apenas uma de nós foi inteligente o suficiente para o fazer. Naturalmente que não fui eu, que precisava da mala para guardar o tabaco.

Estacionado o carro quase à entrada de um musseque e já a caminho da discoteca, a poucos metros do veiculo, o cavalheiro teve que regressar ao dito para ir buscar o telemóvel, do qual se havia esquecido.

Ficámos as três à espera que o cavalheiro regressasse, animadamente tagarelando, quando calmamente se aproximaram dois indivíduos que, interrompendo as nossas gargalhadas (sacanas!), agarraram a minha bolsa (que trazia à tiracolo) e com três esticões - talvez mais, não sei ao certo - conseguiram separá-la da alça que a prendia ao meu ombro. O insitinto impeliu-me a resisitir, mas a minha argumentação ("Não! Não Não!") foi pouco convincente.

Ao mesmo tempo, uma das outras moças, que também trazia uma pequena malinha à tiracolo, foi brindada com a mesma sorte, mas no meio da confusão caiu ao chão e acabou descalça. Agarrou no sapato e ainda correu alguns metros atrás dos indivíduos, convencida que os demovia com uma sandália na mão, e só parou quando eles se enfiaram no meio do musseque, por uma rua estreita e sem luz. Ali uma sandália não lhe valeria de muito.

A outra moça gritava por socorro ao cavalheiro que imediatamente veio a correr.

EPÁ! NÃO FAÇAM ISSO!! NÃO FAÇAM ISSO!

Mais um bocadinho e quase os convencia. Acho que até os vi hesitar.

Nunca mais os vimos. Nem às malas. A sorte é que nenhuma de nós levava documentos. O chato foi que fiquei sem chave para entrar em casa. E o que vale é que estava rodeada por pessoas generosas que me acolheram no seu lar, sem me conhecerem de lado nenhum. Pessoas que hoje têm em mim uma amiga.

Podia ter acontecido em qualquer parte do mundo. O assustador no meio desta história toda é que, em Luanda, não há ninguém a quem se possa recorrer nestas situações. E isso não acontece em qualquer parte do mundo.




Dedicado a todas as minhas amigas chamadas Inês

Não sei porquê, mas a vida cercou-me de Inês(es). E em Luanda também vêm em lata.


É um produto genial das "Conservas Portugal Norte - Lda.". Ainda não vi à venda em Lisboa, mas se houver vai resolver-me muitos problemas pelo Natal. Ainda bem que todas as minhas amigas chamadas Inês gostam de atum.




terça-feira, 22 de março de 2011

Resquícios

Andei nos últimos dias a pensar se haveria de dar continuação a esta coisa. Agora que se foi a inspiração africana, agora que deixei um pedacito de mim por terras vermelhas e trago um pedacito de terra vermelha comigo, valerá a pena insistir neste ego-blog? O problema é que o dedo já ganhou gosto à tecla e aquele sentimento de convicção de obrigatoriedade já invadiu a minha consciência. Estou para me decidir.

O regresso, seja de onde for, é sempre difícil. Pelo menos para quem parte com Alma. Há sempre histórias inacabadas, há sempre aventuras por acontecer, há sempre sítios a que não fomos e há sempre gente que fica lá.

Há quem diga que é mais difícil para quem fica. Talvez. Mas a vida também não é fácil para quem parte. Especialmente se estiver frio à chegada. Valha-me a botija de água quente.

Lá voltei a apanhar o autocarro para o trabalho e enquanto subia para o moderno veículo cor-de-laranja arrependi-me amargamente nunca ter andado de candongueiro, o azul e duvidoso transporte colectivo mais utilizado em Luanda. Durante dois meses vi-os a passar ao meu lado (por vezes demasiado perto, quase levei uma lambada do retrovisor na cara) e nunca tive a coragem de lá entrar.

"Aeroporto, aeroporto!"

Era o destino. Nunca mais me vou esquecer deste pregão. O motorista, com a cabeça de fora e o braço esquerdo a espancar vigorosamente a porta daquela lata velha para anunciar a chegada e o percurso. Do outro lado, o "co-piloto" fazia o mesmo.

Haveria certamente outros destinos, mas este foi o único que ouvi.

Mais uma aventura por acontecer, seguramente, com muitas histórias inacabadas.

Entro no edifício. Habituada à boa disposição das gentes de Luanda, arrisco um sonante

BOM DIA

A resposta foi



qualquer coisa que não percebi. Se calhar nem era para mim.

Lar, doce lar.

E vêm-me à memória imagens como estas



"As cascatas" (deixo à imaginação de cada um perceber porquê)





"Luanda vista da Ilha"




 O Candongueiro (este era dos novos - um verdadeiro luxo)




O Banco Nacional de Angola 




O início da marginal




Nada. Ou vá, qualquer coisa.




As vistas do quotidiano.


Nem tudo era maravilhoso. Mas também não tinha que ser.







quarta-feira, 16 de março de 2011

O Regresso

Às 6h20 da manhã, com pouco mais de hora e meia de sono, arrastei a minha mala com quase 30 kg até à entrada de casa, onde o Sr. Mendonça me esperava (há cerca de meia hora) com o seu habitual sorriso e boa disposição para a minha última viagem nas ruas de Luanda.

"Desculpe o atraso, Sr. Mendonça."

"Não tem problema... Tive de vir mais cedo por causa do trânsito."

Boa gente, o Sr. Mendonça.

Despedi-me mentalmente dos musseques que avistava, das zungueiras, do Bairro do Prenda onde comi funge, do trânsito, dos buracos, do calor, da Cuca e da música que se ouvia na rua. O sono impediu um sentimentalismo mais profundo, daquele que se sente nos olhos. E ainda bem.

Chegada ao aeroporto, dirigi-me ao guichet da companhia aérea para fazer o drop off (abençoado check in online, não fosse isso ainda hoje estava na fila).

"A mala pesa 28 kg, tem que pagar o extra."

"Não me faça isso... eu tiro algum peso"

Retirei um par de sapatos que miraculosamente couberam na mala de mão e o gel duche de quase 2 litros, o qual estava disposta a oferecer ao cumpridor funcionário.

Voltei a colocar a mala no tapete. Pesava 26,5 kg.

Exibi o gel duche ao funcionário na esperança de que o aceitasse como gasosa. Estava meio cheio, mas nunca se sabe.

"É isto que está a fazer diferença?" Abanou o recipiente desconfiado e hesitante. "Pode voltar a pô-lo na mala." Um estalo de luva branca, literalmente.

Agradeci vigorosamente e observei, aliviada, a minha mala (coitada, mais parecia um ovo gigante) a seguir caminho tapete fora. Não sei como consigo sempre viajar com excesso de peso à borla. Deve ser porque sou alta.

Decidi fumar um último cigarro em Luanda e procurava o maço de tabaco na minha gigante mala de mão, com sapatos à mistura, quando de repente ouvi o meu nome em tom de interrogação.

Ao levantar a cabeça deparei-me com uma elegante moça, solenemente fardada, a sorrir-me com espanto e contentamento. Não duvidei por um segundo de quem seria, mesmo com farda de comandante. Foram muitos anos a partilhar a mesma sala de aula, o mesmo recreio, o mesmo elástico de saltar, as mesmas brincadeiras e as mesmas zaragatas. Tinham passado mais de dez anos desde a última vez que nos vimos, mas há pessoas que não se esquecem.

Dirigi-me a ela, retribuindo a surpresa e alegria do reencontro e não demorou muito para perceber que íamos no mesmo vôo.

"Depois vou lá dar-te um beijinho."

Já sentada no avião, um simpático comissário de bordo aproximou-se.

"Gostava que me acompanhasse. Traga as suas coisas... é que vai ficar sentada lá à frente."

Confesso que precisei de alguns segundos para perceber que "lá à frente" era a classe executiva. Escondi o meu contentamento infantil o mais que podia. Não sei se consegui. Só me faltou bater palminhas.

"O Comandante chamou-a ao cockpit para assistir à descolagem."

Tive a sensação de ter regressado à meninice e que me tinham acabado de dar um balde de Legos. Ou o último set da Playmobil. Nunca fui muito dada a bonecas.

E entre milhares de botões, alavancas, ecrans, coordenadas e linguagem que a mim me pareceu imperceptível - mas estou certa que só a mim - tive o maravilhoso privilégio de assistir à descolagem da imponente aeronave que transportava cerca de 150 passageiros para Lisboa.

A quem tem medo de andar de avião posso assegurar: eles sabem o que estão a fazer. Palavra.

Às tantas ganhei coragem e perguntei ao Comandante qual teria sido a experiência mais assustadora.

"Uma vez no Brasil quase estive para abortar a descolagem porque o peso do avião excedia em muitas toneladas o permitido. Mas depois lá consegui, em segurança, naturalmente."

Jurei a mim mesma nunca mais viajar com excesso de peso. Em silêncio, para não ferir susceptibilidades.

Havia muita conversa para pôr em dia, mas optei por não atrapalhar a navegação e confesso que estava com alguma ansiedade para experienciar, pela primeira vez, uma viagem "à executiva". Pode soar a piroseira, mas é verdade. Além disso, tive o convite para regressar mais tarde.

Mal me sentei não resisti à tentação de brincar freneticamente com o botãozinho de levantar e estender a cadeira, só pela graça de me sentar e deitar mexendo apenas um dedo.

"Djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjj djjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjjj"

Parei quando o passageiro do lado olhou para mim como se fosse uma extra-terrestre. Depois diverti-me com os botões da televisão, que ao menos era mais discreto.

Em executiva enchem-nos com mimos. E dão-nos talheres a sério, daqueles que antigamente toda a gente levava para recordação.

"Deseja um aperitivo?" "Prefere sopa ou entrada fria?" "Posso oferecer-lhe um chocolate?"

De barriguinha cheia, estendi a cadeira até ficar completamente horizontal e dormi o sono dos justos até à altura da aterragem (ou, tecnicamente, da "aproximação"), altura em que regressei ao cockpit.

A aproximação correu pacificamente e orgulhosa assisti à brilhante execução da minha amiga. Bravo.

Desfiz-me em agradecimentos, trocámos números de telefone e ficou a promessa de um reencontro.

O regresso não podia ter sido mais triunfal. O contraste de realidades foi chocante. Ao menos tinha os meus Pais à espera para afogar as saudades, com gerberas e tudo. Aí já não consegui evitar o sentimentalismo mais profundo.










segunda-feira, 14 de março de 2011

Luanda chora porque me vou embora.

O momento requer um tanto de solenidade e lamechice. Vou regressar a casa daqui a umas horas e as despedidas sabem-me sempre a pouco.

Ontem fiz questão de dizer um até já às pessoas e aos locais que me vão deixar mais saudades. O plano era simples: jantar-petiscada e um pezinho de dança na primeira discoteca a que fui em Luanda: o Eden.

Mas a imprevisibilidade de Luanda arrasa qualquer plano, por muito simples que seja. O jantar-petiscada correu maravilhosamente, no restaurante "Palhota", entre quitetas, leitão assado (da Bairrada!), choco frito (tão bom ou melhor que o de Setúbal), chouriço picante, tudo com batatinhas fritas a acompanhar.

Estavamos sentados na esplanada, coberta com uns chapéus de sol e uns toldos  improvisados, quando o primeito clarão iluminou os céus.

"Será que vai chover?"

Não demorou muito para saber a resposta. O dilúvio foi de tal ordem que não houve toldo nem chapéu que não cedesse.

"Salvem-se as quitetas e o choco!" Essa era a prioridade.

Lá nos conseguimos encolher todos nos espacinhos minimamente secos, depois de uma ciranda de cadeiras, mesas, travessas, talheres e copos. Sem maka, que vieram mais quitetas e choco.

Passava pouco da meia noite quando arrancámos para o Eden. O dilúvio tinha acalmado, mas a chuva continuava a dar o ar de sua graça.

"Ainda não abriu".

Começa bem. Ficar à chuva não era opção (ainda) e em Luanda não há propriamente barzinhos para drinks ou, como dizem os mexicanos, para pre-copar. Apelo desde já à comunidade internacional (ONG's incluídas) para suprimirem esta enorme falha na noite Luandense.

Por outro lado, há discotecas como se não houvesse amanhã. Um pouco menos Afro, a discoteca Miami era mesmo ali ao lado (que é como quem diz 15 minutos a pé), embora não seja muito pródiga em música angolana. Tinha esperança que naquela noite fugisse à regra.

"Está fechado".

Fazia sentido, dado que é uma discoteca praticamente toda ao ar livre e o sítio estava "indançável".

Foi aí que a chuva ceifou as minhas expectativas de acabar a noite ao som de kizomba. Luanda chorava.

Avançámos para o Lokal, outra discoteca, essa sim, literalmente mesmo ali ao lado. Também não era coberta, o que acabou por revelar-se bastante positivo. É que dançar à chuva, como um calor dos diabos, ao som da música "This time for Africa" foi verdadeiramente arrepiante. Nunca mais menosprezo a Shakira.

Luanda ensopou-me. Fosse em Lisboa já tinha apanhado uma pneumonia ou, quem sabe, gripe A. Como aqui não há dessas coisas finas de gripes com letras, além de que o calor fazia eveporar todas as gotículas que caíam, sentir aquela chuvinha  quente até deu mais emoção à despedida.

Foi o verdadeiro Dancing in the rain.

Dois meses depois de ter chegado continuo a ser surpreendida por esta cidade.

Sei que irei perder muitas mais surpresas.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Pequenas coisas do quotidiano em Luanda - Parte IV

O Suor

Estou para escrever sobre este tema desde que saí porta fora do avião, pela primeira vez, no Aeroporto Internacional de 4 de Fevereiro. O pudor e a etiqueta têm-me impedido de ousar dissertar sobre as vicissitudes que a temperatura constantemente elevada provoca nas glândulas sudoríparas. Tentarei ser o mais delicada possível, mas há coisas que têm de ser ditas, não vá alguém ao engano.

Aqui sua-se. Não é preciso muito, basta não haver ar condicionado. Ou melhor, basta o ar condicionado estar regulado acima dos 23ºC. E mesmo assim, não é certo. Sua-se em casa, na rua, nos restaurantes, nas repartições públicas, nos supermercados, nos carros, na praia e à sombra. No início, confesso, é assaz incomodativo. Mas não demora muito até integrar naturalmente o nosso quotidiano.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Estou certa que não era à Coca Cola que Fernando Pessoa se referia quando se lembrou desta brilhante tirada. Referia-se, sim, ao suor que se fazia sentir nas Colónias Ultramarinas (ou para ser politicamente mais correcta, nas Províncias). Interpretaram-no mal. Nunca teve muita sorte, coitado. Até hoje ninguém percebeu muito bem o que ele queria dizer. Já o Álvaro de Campos era cristalino.

Come chocolates, pequena...

Devaneios à parte, nem os três frascos de desodorizante que trouxe de Lisboa me safaram. Dove Invisible Dry 24h. Pois sim. Nem invisível, nem seca, nem 24 horas. Com sorte, nos primeiros 10 segundos depois do banho. Um grandecíssimo embuste, um típico caso de publicidade enganosa, sem pôr nem tirar. Ao menos poderiam ressalvar que o produto só é aplicável em climas distantes do Equador. Dove Invisible Dry 24h 2000000 miles away from the Equator. É que não foi uma nem duas vezes que tive de mudar de roupa a meio do dia. A sorte é que se lavo roupa à tarde, à noite já está seca.

Mas com as minhas vicissitudes sudoríparas posso eu bem (nem tive outro remédio). Já as vicissitudes sudoríparas dos outros são mais difíceis de suportar. Especialmente em elevadores. 

Ai Pessoa, se tu soubesses...








terça-feira, 8 de março de 2011

Finalmente, o Mussulo.

Parece que não, mas já vai para dois meses que pousei meu alvo pé nesta terra vermelha. Ligeiramente mais bronzeado, o meu pé já calcou muita areia e muito asfalto e teve há dias o prazer de se enterrar nas areias do Mussulo.

A viagem para o Mussulo faz-se de barco. Não é um barco qualquer, como aquele que atravessa placidamente o Tejo, desde Alcântara até Cacilhas, nem é comparável à empáfia da Baltic Princess que navega entre Helsínquia e Tallinn. Este tem muito mais charme. É uma lancha de madeira rusticamente pintada, 5 X 2, apetrechada com um valente motor Yamaha, onde os passageiros (bem apertadinhos, cabem pelo menos 10) se sentam confortavelmente em tábuas atravessadas (algumas, inclusive, almofadadas) e arranca pululando temerariamente entre as ondas até ao desejado destino. O que vale é que nos dão coletes, não vá alguém entusiasmar-se.

O preço da viagem é negociado antes do início do trajecto e o valor varia, secretamente, consoante a nacionalidade dos passageiros. Os pulas pagam o dobro. Os pulas "mangolê" lá conseguem um desconto.

"Tito, dá-me o teu número de telemóvel para depois nos vires buscar".

E com um pé na água lá entrámos para a lancha, mais as sacolas, as toalhas e a geleira, onde levávamos um digno mata-bicho. É que no Mussulo só há um restaurante-bar, que por sinal é o único que disponibiliza, mediante o pagamento de módica quantia, chapéus de palha e colchões aos veraneantes. É um verdadeiro monopólio.

Viagem sem makas.

Desembarcámos perto do restaurante, prontos para abancar por baixo de uma dos chapeuzinhos de palha já que às 10h da manhã o sol não estava para cerimónias.

"O aluguer são 1000 kwanzas, mas tem que entregar a geleira, que o chefe não deixa."

Ora gaita. Não podiamos ficar sem o mata-bicho.

"Então deixe estar que vamos para outro sítio"

E orgulhosamente arrastámos as sacolas, as toalhas e a amada geleira para outra ponta da praia. Não demorou muito tempo para percebermos que sem sombra a coisa ia correr muito mal.

Improvisámos. Ou, à boa maneira portuguesa, desenrascámo-nos.




Entre muitos banhos, muito protector e muita água tónica, lá iamos gozando a paisagem magnífica que nos cercava.

Ao longe avistava-se a sombra fresca de umas palmeiras que rodeavam uns bungallows. Dava ares de pertencer a terceiros. Mas não havia vedação, apenas uma pontezinha de madeira que convidava à passagem. Que desperdício, aquela sombra sem ninguém para aproveitar.




"Bora?"

"Bora".

E passámos o resto da tarde a admirar este espectáculo.








Degustado o mata-bicho, lá nos rendemos ao único restaurante-bar do Mussulo, onde acabámos por encerrar o dia de praia.

 


"Tito, podes vir buscar-nos?"

O Tito não apareceu. O que vale é que Titos há muitos.

Ter dias assim deveria ser um direito inalienável de cada cidadão, constitucionalmente protegido.










sábado, 5 de março de 2011

Bob Da Rage Sense

Sempre tive uma paixãozinha oculta por hip hop. Nada de muito assolapado. Uma coisa de vai e vem. Gosto da batida e das rimas e da paixão com que uma frase é atabalhoadamente comprimida ao ritmo da música, independentemente do comprimento. Estica-se uma sílaba, encolhe-se a outra, os ditongos são quando um homem quiser, e cá vai disto. No fim acaba-se sempre por abanar a cabeça e sentir as palavras que, regra geral, requerem revolução. É um apelo ao pequeno intervencionista que existe em cada um de nós (e quem o negar é mentiroso) e que volta e meia lá dá sinais de vida. 

"'Bora ao concerto do Bob da Rage Sense no Cineteatro?"

"'Bora."

Não era eu que ia perder um concerto do artista do momento, cuja existência desconhecia em absoluto até à data. Para além de que ir ouvir "hip hop" num "cineteatro" tinha qualquer coisa de místico. E de improvável. O suficiente para me despertar a curiosidade.

A fachada do Cineteatro de Luanda tem a imponência da palavra. É uma espécie de réplica daquilo que talvez tenha sido um Cineteatro helénico. Com direito a colunas altas e fronte (penso eu) de pedra, onde estavam talhadas algumas personagens da mitologia greco-romana. Ainda consegui distinguir Neptuno, graças ao Tridente.

Mal chegámos, percebi que o evento era de dimensão consideravelmente razoável face ao tamanho do anfiteatro (não me quero enganar mas talvez seja comparável ao Politeama, só que ao ar livre) e ao número de pessoas que lá se encontravam (talvez mais de 500). Mulheres? Umas dez. Brancas? Três. E eu só conhecia uma delas.

Tenho a dizer que esse facto não me fez sentir minimamente desconfortável, nem observada. Vá, talvez ligeiramente observada, mas com aquele tom de curiosidade e uma pitada de condescendência que uma pessoa sente quando vai overdressed para uma festa na praia.

Antes de o Bob entrar em cena, actuou um número interminável de artistas angolanos de hip hop, cujos nomes, confesso, não fui capaz de memorizar. Mas deu para perceber que Angola não é so kizomba.

Gostei de ouvir o Bob. Gostei mesmo. As letras são inteligentes, revelam cultura, mostram paixão e têm mensagem. Só espero é que essa mensagem não seja mal interpretada.





O publico sabia este refrão de cor. E a verdade é que fica no ouvido.

Foi um concerto bastante tranquilo, com constantes mensagens de paz e apelo à serenidade.  

"Paz, meu irmão. Sê inteligente na tua luta."

Já no final do concerto, duas branquelas juntaram-se à multidão que esbracejava ritmadamente ao pé do palco. Tiraram fotos e tudo. Doidas.

Paz Bob! Paz Angola!
 



terça-feira, 1 de março de 2011

Madrinha, quer Marlboro?

Não conheço nenhuma tabacaria em Luanda. O tabaco vende-se na rua, misturado com papaias, ananases, maçãs, laranjas, banana-pão e outras frutas que não consigo identificar (por ignorância frutícula), óculos de sol, produtos de manicure (das mais variadas proveniências), artesanato, cartões de recarga para telemóvel,  bébés de fralda a dormir em cima de panos, peixe seco, pilhas e sei lá eu mais o quê. Digamos que o comércio tradicional em Luanda faria as delícias da ASAE. E da comissão de protecção de menores também.

Se há coisa boa de ser fumadora em Luanda é que o tabaco aqui é uma real pechincha. Compra-se Marlboro a 200 kwanzas (mais ou menos 1,5 €) e já é carote. A coisa má é que não se vende o meu tabaco de eleição - Marlboro 100's. Quem me conhece sabe de cor e salteado que me recuso a dar um cêntimo por outro tabaco que não seja Marlboro 100's (já que me estou a matar, ao menos que seja com gosto e com classe). No entanto, não tive grande alternativa para suprir o meu vício que, diga-se, reduziu consideravelmente, graças à humidade e à poeira constante no ar que satisfazem parcialmente os meus alvéolos sedentos de nicotina. Ainda assim, não é desta que deixo de fumar. Chegará o dia.

Todos os dias de manhã, ao descer a rua, passo pelos moços que vendem tabaco importado (ou outra figura jurídica semelhante) de África do Sul, simetricamente organizado em dois caixotes de cartão sem tampa. Bastou comprar-lhes, por duas vezes, um Marlborozito (nome carinhoso que dou ao primo pobre do Marlboro 100's) para me ficarem a conhecer a preferência. Ou então lembram-se de mim por ser alta.

"Madrinha, quer Marlboro?"

 E foi assim que arranjei os meus personal dealers em menos de nada.

Ainda ontem me fiaram o tabaco.

"Não tenho troco Madrinha, paga amanhã."

Em Lisboa não se arranja disto.