sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Estive para ganhar o euromilhões,

mas em vez disso ganhei juízo. Duas vezes.

Há dias em que me dava jeito ter cinco mãos, sete pés e noventa e duas horas. Como não me conformo com a minha compungente condição espacio-temporalmente limitada, resolvo fazer tudo ao mesmo tempo. É esta a miserável desculpa que apresento ao meu culpado ego por ter atendido o telemóvel enquanto conduzia.

Infelizmente o Senhor Agente não se comoveu com a mesma facilidade.

"A Senhora Condutora ia muito distraída..."

"Pois ia Senhor Agente...", disse candidamente, enquanto preparava uma lágrima.

"Estivemos parados ao seu lado no semáforo quando atendeu o telefone. Só faltou bater-lhe no vidro".

O semáforo tinha ficado há 10 minutos atrás. Não tinha alternativa - a lágrima tinha de saltar com urgência.

"Oh Senhor Agente, peço imensa desculpa!" [soluço, olhos esbugalhados] "Foi uma emergência!" [soluço, testa franzida] "Nunca faço estas coisas" [soluço soluço, mão na testa, soluço] "Foi uma vez sem exemplo" [soluço, lágrima, beicinho, lágrima, beicinho].

Respirei fundo e repeti a dose. Aproveitei para lhe ver o nome na lapela e comecei a tratá-lo pela sua graça, a ver se o amanteigava.

"Vou ter que a autuar, não há mesmo maneira de dar a volta a isto."

Xiça. Já não há cavalheiros. Exausta do choramingo, que não me estava a levar a lado nenhum, perguntei-lhe quanto é que era a multa.

"120 euros."

Se me tivessem dado com um escafandro nos dentes teria doído menos. Saltaram-me as lágrimas sem licença. Chorei com tal vontade que me faltou o ar, qual Alma perdida, como se a minha inteira existência passada, futura e póstuma dependesse da misericórdia do Senhor Agente.

"Ó Senhor Agente Jerónimo... [nome fictício]" ainda balbuciei, com as mãos unidas em oração, com muitas fungadelas suplicadas. Nem consegui terminar a frase, tal era o meu estado de prostração.

Nada. Nem uma abébia. Nem um desconto.

Que saudades de Angola.

Desconsolada e de papel químico na mão, lá segui caminho, enxugando as lágrimas (agora genuínas), orquestrando mentalmente a criativa impugnação que ia apresentar em minha defesa. Valha-me a justiça portuguesa.

Até aqui nada de transcendente: é a história de mais uma vítima da sua própria estupidez.

O dia seguinte era sexta-feira. Picado o ponto de saída, esperava-me uma noite em grande: teatro, petiscos, imperiais e, quem sabe, um pezinho de dança.

E assim foi, sem alarmes nem surpresas. Regalada com o serão, pedi boleia para casa a uma amiga minha no final da noite. 

Navegando calmamente pela estrada fora, um aglomerado de luzes, carros e agitação atabalhoada surpreendeu-nos quase a chegar a casa. Era uma operação STOP.

"Olha em frente como se não fosse nada contigo."

Mesmo que não fosse, passou a ser. Um dos Senhores Agentes escolheu-nos (aleatoriamente) para uma pequena conversa. Ambas sentimos um ligeiro calafrio - quem não treme perante o esbracejar da autoridade? 


"Boa noite Senhora Condutora".


Desta vez não era eu. Senti-me cobardemente aliviada. Depois das apresentações e exibição dos devidos documentos, veio a pergunta fatal,

"A Senhora Condutora ingeriu bebidas alcoólicas?"

A minha amiga estava a beber água há quase duas horas, mas antes disso havia sucumbido a dois pecados.

"Sim, Senhor Agente. Bebi duas caipirinhas."

"E de certeza que, para manter a linha, não comeu nada...?"

"Ihihihi"

Até àquele momento estava a correr bem. O pior foi quando a minha amiga, que soprava no balão pela primeira vez na vida, obrigou o Senhor Agente a repetir o teste quatro vezes.

"NÃO É ASSIM - inspire até ao fim e EXPIRE com força para dentro do tubo!"

Funesta expiração que fez apitar a maquineta dos infernos!

250 euros de multa. Saltou-me a tampa.

"Oh Senhor Agente, pelo amor de Deus, ainda ontem fui autuada!! Será possível???"

"E foi autuada porquê?"

"Vinha a conduzir e a falar ao telemóvel..."

"E NÃO SE RECORDA DE MIM?"

Era o mesmo Agente. O mesmo Agente Jerónimo. À minha saúde. Em zona e horário diferente. Era coisa do diabo. Dos diabos.

"Não vai começar a chorar agora pois não?" 

"Claro que não Senhor Agente, mas veja lá esta situação, dois dias seguidos... "

"Vamos esperar um bocadinho e já cá volto."

A minha amiga bebeu toda a água que havia no carro, só faltou ir ao recipiente do mija-mija. O certo é que os céus ouviram as nossas preces e o resultado do teste final já escapava à contra-ordenação.

Em jeito de despedida, disse-lhe a minha amiga "Obrigada Senhor Agente!"

"Obrigada não, isto tudo se paga..."

Arre. Por esta é que não esperava.






terça-feira, 4 de setembro de 2012

As ratazanas do ar.

Se há criatura que (infelizmente) é completamente invulnerável às intempéries da crise é o pombo. É pior que a barata, que a traça, que a pulga, que a formiga ou que a Troika. É uma autêntica praga nacional, vivida com particular intensidade na cidade de Lisboa.

Não pode ter passado despercebido a ninguém o excesso demográfico desta espécie de entulho voador. É sinónimo de poluição, sujidade, desleixo e porcaria. Sem mais, simplesmente porcaria.

O pombo é o único ser que verdadeiramente me repugna. O único ser que consegue arrancar-me palavras de ódio e gestos de ira descontrolada. Nem categoria de animal merece, é uma miserável desculpa de existência. E não morrem, os sacanas. A malta queixa-se que o pão está caro, mas pelos vistos os senhores pombos, anafadinhos como andam, devem ter entregas especiais vindas de Mafra. 

Eu sei que não estou sozinha. Eu sei que há muito boa gente que oculta esta raiva animalesca pelas inefáveis criaturas, que guarda com vergonha um rancor indomável e uma louca vontade de estrafegar os seus pescocinhos pestilentos.

Engordam à custa de restos de carcaças distribuídos por quem não tem noção da verdadeira natureza destes monstros voadores. Além de portadores e transmissores de doenças contagiosas - como a raiva - propagam a imundice com bombas atómicas provenientes da sua "bazuca anal" (já diziam os saudosos "Mamonas Assassinas").

Carecas distraídas, almoços no Terreiro do Paço, carros novos ou com pinturas renovadas e qualquer estátua, monumento ou mastro erigido em nome da grandeza e sublimidade nacional são as tradicionais vítimas do flagelo causado por aquele ácido pastoso que é inversamente vomitado.

Ninguém está descansado. Eu atravesso sempre o Rossio a correr desalmadamente, não vá ser abençoada com uma suprema cagadela entre o Nicola e o Teatro D. Maria.

É hora minha gente. É hora de acabar com os pombos. Chega de toilettes arruinadas, de capôs queimados, de almoços temperados, de gelados com toppings especiais, de estátuas com cabeleiras viscosas e de monumentos grafitados por caca. Para quem não saiba, a lei (desta vez) está do nosso lado: em Lisboa, alimentar pombos em via pública é proibido e dá multa que pode ir até cem euros.

Por isso, da próxima vez que vir alguém lançar a mão com migalhitas para estes seres do inferno chamo a polícia. Raios, é que chamo a Europol se for preciso. E a TVI. A RTP também, que afinal de contas isto é um serviço público. Pode ser que venha a Catarina Furtado e tudo.

Tenho a certeza que há muita gente a pensar como eu. Diria mais: se em vez de touradas fossem "pombadas" não faltariam olés e seriam todas de morte.

A única advertência que tenho a fazer é o perigo de confusão entre pombos e rolas. Até podem ser fisionomicamente parecidos, mas comportam-se de maneira diametralmente oposta: são asseadas, respeitadoras e leais. Cuidam dos seus ninhos, da sua higiene, são reservadas e prezam a amizade.

Aqui há tempos apareceram-me umas quantas no beiral da janela da cozinha.  Assustavam-se cada vez que tentava abrir a janela para lhes dar arroz, mas com o tempo foram vencendo a desconfiança, até que se tornou num quotidiano enternecedor. Agora, sempre à mesma hora pela manhã, lá aparecem como que a pedir um grãozinho "se faz favor". Sinto-me num livro de Saint Exupery.

Estive uns dias fora e julguei que teriam debandado, cansadas da demora, à procura de melhores colheitas. Afinal de contas, quanto tempo se deve esperar por um punhado de arroz?

No dia seguinte ao meu regresso, acordei e ainda em camisa de noite espreitei pela janela para a gigantesca árvore que as alberga. Não foi preciso um minuto para virem pousar no beiral da janela da minha cozinha, como dantes. Até parecia que tinham saudades. De mim ou do punhado de arroz.


(uma das rolas que assentou no beiral da janela da cozinha)



De vez em quando aventura-se um pombo, a fingir que disfarça no meio delas. Leva logo uma chinelada.