segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Kizomba, Semba e Romance

Considero-me uma pessoa com algum ouvido, ritmo acertado e "jogo de cintura" mas kizomba não é fácil. Conjugar o abanar da anca, o espetar do rabo, a flexão dos joelhos e os permanentes movimentos giratórios dos pés em coordenação simétrica com outra pessoa requer ciência.

"É só ouvir a música."

Ora gaita, se fosse só isso já andava a ensinar angolanos.

Para ajudar à festa, há uma diferença radical entre kizomba e semba. Tão radical que ainda não percebi bem qual é. Segundo entendidos, a semba tem um ritmo mais frenético que a kizomba, pelo que o tal abanar da anca, o espetar do rabo, a flexão do joelho e o permanente movimento giratório é ainda mais complexo. Claro que a parte mais elaborada está reservada às mulheres.

Mas a kizomba e a semba são muito mais que dois estilos de dança. As letras que geralmente acompanham a música retratam histórias de amor complicadas, o modus vivendi angolano e chegam a transmitir mensagens socialmente educativas. Não estou a ser irónica: a realidade angolana precisa desta forma de expressão para retratar alguns temas delicados, designadamente, a dignidade da mulher, a igualdade dos sexos, a violência doméstica, a pobreza, a fome, as doenças, a educação, a guerra, a criminalidade e muitas outras realidades que nós, pulas, em quase já nem pensamos, mas que o povo angolano ainda está a conquistar ao fim de tantos anos de guerra e de desgovernação.

Seguem alguns exemplos:

VOU XINGUILAR - GISELA SILVA
(http://bemfalar.com/significado/xinguilar.html)




Esta música retrata o que acontece ainda hoje na sociedade angolana: o alambamento. O alambamento é algo semelhante a um dote que a família do noivo entrega à família da noiva antes do casamento. Podem ser fatos, grades de cerveja, comida, dinheiro tudo aquilo que for pedido numa lista elaborada para o efeito.

Nesta música, a moça é maltratada pela família do noivo, em particular  por um tio, e pede à mãe e ao pai para devolverem o alambamento (evitando assim o casamento).

Os tios são os intervenientes mais importantes no momento da união do casal e que determinam se a união será realizada com o apoio da família.

Parte da letra é:
"Mãe é melhor devolver o alambamento que deram
Querem me matar...

Pai é melhor devolver o fato que deram
Querem me matar...

Chegou o tio que vive lá fora
Chegou em casa e me disse na cara
Tu és muito feia
Pareces sereia
Volta para o teu ninho
(...)"

Oferecem-se alvíssaras a quem descortinar o motivo da comparação à "sereia" (seria só para rimar?).



 
TÁ SAIR MALE

Outro tema é o "Tá sair male" do Puto Português (as letras explicam tudo - ver em baixo).



Aquele kandengue que viste crescer
Agora é um rapaz fora da lei
Só pensar em roubar matar e ferir
Estudar que é bom mano não sei
Assim como vamos fazer então
Nossa juventude está ficar frustrada
Nós já não queremos mais trabalhar
Coisa dos outros queremos aldrabar
Você é cantor, você é pedreiro
Você é marcineiro.
Você é cantor, você é pedreiro
Você é marcineiro.
Enquanto Massochi está mbora na roda
vender comida é seu carvão
Minguito lixado está mbora na via
Com a sua pistola assaltando as pessoas
Como vamos viver assim
Nossa juventude estamos perder
Agora é só lamentar, agora é só chorar
Ai, ai, ai, ai, aiue
Ai, ai, ai, ai, aiue
aiue, tá malé, ta malé. ta malé
Tas sair malé
tá malé, ta malé, ta malé
Tas sair malé
Aquela miúda do Marçal, só quer saber já dos papoites
Só tem então 13 anos, mas só quer saber dos papoites
Comadre Joaquina namora com o João
Mas também namora com o amigo do João
Era casado com o irmão do João
Mas antes saia com o primo do João
Você que estuda, Você é enfermeira, Você é zungueira,
Você ta sair bem
Você que estuda, Você é enfermeira, Você é zungueira,
Você ta sair bem
Miúda que era minha namorada de repente ficou minha madrasta
Descobriu que o dinheiro não era meu
Então casou com o meu papá
Mas Como vamos viver assim
Nossa juventude estamos perder
Agora é só lamentar, agora é só chorar
Ai, ai, ai, ai, aiue
Ai, ai, ai, ai, aiue
aiue, tá malé, ta malé. ta malé
Tas sair malé
tá malé, ta malé, ta malé
Tas sair malé


Apaixonei-me por estes dois sembas mal os ouvi (por favor, alguém me corrija se afinal forem kizombas). Goste-se ou não deste estilo de música, a verdade é que é impossível não abanar (pelo menos) os ombros com este ritmo. O resto é que é mais complicado.

O mundo musical africano tem ainda outras facetas. Trocam-se palavras duras e vivem-se paixões mal resolvidas  entre os próprios intérpretes. É o caso do famoso romance entre a Ary e o Heavy C (em angolano eivi c), um verdadeiro reality show musical.

No rescaldo de um desentendimento a Ary escreveu o seguinte tema:



E a resposta do Heavy C não demorou:



A música do Heavy (só eivi, que já sou da casa) tem ainda uma componente pedagogico-social importante (e com um toque de humor delicioso).


Prometo não deixar as minhas incursões musicais por aqui.








 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Praia e cinema

A todos aqueles que estão enregelados de frio, a tiritar entre cobertas e botijas de água quente, meinhas de lã e camisolas interiores, os meus respeitosos sentimentos. É que ir à praia em pleno Janeiro, para quem está habituado a ter as mãos roxas e os dedos cheios de frieiras a esta altura do ano, é, no mínimo, irónico. O frio da Europa não assola as Áfricas. Fiquem com ele. Têm ruas limpas? Fiquem com o frio. Têm água potável? Fiquem com frio. Têm estradas circuláveis? Fiquem com o frio. Têm energias renováveis? Fiquem com frio. Têm reciclagem? Fiquem com o frio. Deste clima não me canso.

As praias de Luanda são tão boas e limpas como a praia da Cruz Quebrada. Só que na Cruz Quebrada a água não tem 25º C (de mínima). Nem se vêem vendedores ambulantes com quadros, estatuetas, batatas fritas, pulseiras, óculos de sol, telemóveis, refrescos... De resto, é mais ou menos a mesma coisa. Ainda não sei como são as praias do Mussulo, mas estou expectante.

Percorrendo a marginal de carro, é interessante assistir ao contraste entre o vigor dos verdejantes e o lixo amontoado à entrada do musseque. As palmeiras brotam de sacos de plástico. As barracas escondem-se por trás de bananeiras. E o Atlântico, como pano de fundo, dissipa a poeira e os fumos dos escapes. 

Carros, gente, poeira, motas, crianças, comida, cores, sol, gritos, risos, música, pés descalços, engraxadores, mulheres, mosquitos, fruta. Tudo se vê e tudo se vende à beira da estrada. 

"Dava jeito carvão para o churrasco mais logo" - em casa de um amigo (de um amigo de alguém, perdi a conta, mas também já é meu amigo), algures em Ingombota (ou seria na Maianga?).

"Encosta aí que vi uma senhora a vender carvão". 

Nem saímos do veículo - a transacção comercial prevista no artigo 463º do Código Comercial Angolano foi efectuada pela janela meia aberta do carro.

"100 kwanzas por saco? Dá-me três."

Seguindo viagem, a caminho da churrascada, as obras na estrada, o calor abrasador e a fome (ai, a fome) empurram-nos para caminhos tortuosos e ruas em sentido proíbido. Quando demos conta, já tinhamos sido apanhados. 

- "A Senhora Condutora não fez o exame de código?"
- "Senhor Polícia, tem toda a razão, não vi o sinal e vou levar estas minhas amigas ao aeroporto, que se vão agora embora...!"
- "Vou ter de a autuar..."
- "Senhor Polícia não me faça isso.... como podemos resolver a situação? Compreenda... eu dou-lhe uma gratificação..."

O churrasco correu sem sobressaltos.

"E se fôssemos ao cinema?"

Às 20h30 lá íamos a caminho do Centro Comercial Belas - o único centro comercial em Angola - para ver "O Turista", no imponente CinePlace que orgulhosamente alberga as únicas salas de cinema deste País.

As pipocas deviam ser muito boas, pena foi não termos tido tempo para estar na fila à espera que se fizessem mais. É que a sessão começava a horas.

Ficámos separados, já que a sala gigantesca estava quase cheia, mas na realidade nunca me senti só. Foi como assistir a um jogo de futebol, onde as emoções são sentidas pelos espectadores com a mesma intensidade que as próprias personagens. Palmas para as vitórias, uivos para as desilusões.

E assim se passou um Domingo. Praia e cinema não são nada de absolutamente extraordinário em Lisboa, mas em Luanda é sempre uma aventura.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Foi na Rua da Tipografia da Mamã Tita que aprendi o que custa a vida em Luanda



Não foram as primeiras compras domésticas que fiz em Luanda mas são o exemplo perfeito do custo de vida desta cidade. A título de curiosidade, 4.000,00 Kwanzas são sensivelmente 40 Euros e pouco mais de metade do salário mínimo de um Angolano (segundo fontes locais, ninguém sabe muito bem ao certo).

Trouxe 5 pacotes de leite (a 2 Euros e pouco o litro, por ser da marca Parmalat, dado que já não havia meio gordo da Mimosa, que custa a módica quantia de um euro e meio, sendo que as outras marcas não andam muito longe disto), uma caixa de cereais, um frasco de Nuttella (ós anos que não comia disto), 100 gr de café, 250 gr de açúcar (em pacotinhos, daqueles que nos servem com as bicas, embrulhados num saco de plástico transparente cuidadosamente fechado com um elástico), um frasco de polpa de tomate e uma caixa de 2kg de skip (quase 14 Euros).

Como é que esta gente sobrevive?



sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Tango em Luanda

Já pronta para ir para a cama, sentei-me cá fora nas escadas para fumar o último cigarro do dia (para não deixar ninguém preocupado, entre as escadas e a "rua" existe um muro e uma vedação vigiadas por um segurança. Posso fumar ali à vontade e até posso fazer o pino que ninguém me incomodará). Tenho a dizer que é particularmente agradável sair porta fora, já depois das onze e meia da noite e sentir aquela brisa morna que em Lisboa só sente em tardes demasiado quentes de Verão. Mas aqui é todo o ano.

Foi depois de acender o cigarro que comecei a ouvir, não muito longe, o som de um piano, seguido do que me pareceu ser um contrabaixo e um bandonéon (acho que é assim que se diz e espero que seja assim que se escreve). Não percebo nada de música, mas ainda consigo identificar um tango, graças à colecção interminável de música argentina que o meu Pai guarda em casa. Sim, Papá, eu ouvi muitas vezes esses cd's e continuarei a ouvi-los enquanto não estiverem riscados. E gosto.

Não posso jurar que era tocado ao vivo, mas posso imaginar. Na memória ficará a imaginação.

Segundos depois ouve-se "um...dois...três...quatro...". Era uma aula. Uma aula de tango mesmo ali ao lado. Ainda espreitei e estiquei-me toda do patamar das escadas mas infelizmente não consegui perceber de onde  viria exactamente a melodia. Não era de bom tom ir para a rua de camisa de noite, por isso resolvi sentar-me.

E sentada continuei a ouvir um tango, a sentir uma brisa abafada e olhar para um prédio semi-reconstruído e semi-abandonado - mas habitado - que se vê do cimo das escadas. Foi um momento que teve tanto de burlesco como de decadente, mas que me fez sorrir.

Estou repleta.

É o que se diz por cá, depois de um maravilhoso repasto, composto por um pargo orgulhosamente pescado no Rio Kwanza, assado no forno com batatinhas e temperado com cebola, alho, pimentos e mais umas quantas iguarias que me encontro impedida de revelar (por falta de memória, não por qualquer imposição do cozinheiro, a quem não faltou generosidade).

A finalizar, uma uma salada de frutas frescas, da melhor que já comi.

Foi assim que passei o serão de quarta feira, rodeada de pessoas cheias de histórias emocionantes para contar sobre a vida em em África, e em particular sobre a vida em Luanda. Gente que, desde que cá chegou, nunca mais quis largar a "Mãe".

Aqui sou recebida como amiga de longa data em casa de pessoas que nunca me viram mais gorda e que têm todo o gosto em engordar-me. Mesmo que não traga nada comigo, a não ser cerimónia. Já percebi que a posso deixar em casa.

Estou repleta.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Chuva Tropical

Parece o título de um filme de suspense barato dos anos 80, série B, mas justifica-se.

Chuva no hemisfério norte é mentira. Quer dizer, não percorri o hemisfério norte à chuva, por isso não tenho a certeza. Mas a chuva que já apanhei no hemisfério norte não me encharca as pestanas. No hemisfério norte nunca chapinhei em sandálias (como hoje, inadvertidamente, aconteceu). No hemisfério norte só chapinhei com galochas. E era mais novita. No hemisfério norte nunca vi pessoas a sorrir à chuva. No hemisfério norte a chuva zanga as pessoas.

Olha-se pela janela e sente-se frio. Sai-se porta fora e sente-se calor. A visão sempre foi enganadora, é bom não confiar muito nela. A chuva é quente. Seca entre duas gotas. O chão está quente. O ar é quente. 

Ninguém sabe se amanhã continuará a chover. Mas está calor... quem quer saber?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Fim de semana

Primeiro fim de semana em Luanda. Só podia ter sido uma aventura. E foi. Começou tarde, num churrasco em casa de amigos de amigos de amigos. Morcelas, alheiras, chouriços, farinheiras... acompanhado com feijão preto e arroz. Mais tarde introduzimo-nos (in)discretamente na festa do pedido de casamento de um dos amigos de amigos de amigos de amigos de amigos. A finalizar, kizomba até às 6h00 da manhã. Pelo meio, muitas peripécias. Ficam algumas por contar, para dar aquela emoção ao meu regresso. Estes próximos dois meses prometem. E já estão a cumprir.

O melhor de tudo é a solidariedade e a entreajuda dentro da comunidade portuguesa. Nunca vi nada igual. Numa cidade tão dura não imaginei  encontrar tanta generosidade. É reconfortante e inspirador.

" 'Nha amiga, banana boa, rija"

É o que se ouve, enquanto se faz gincana entre os buracos, o lixo, os esgotos, rios que escorrem dos ares condicionados (prefiro pensar que é esse o motivo), as raízes das árvores que irrompem do alcatrão (nesta terra tudo nasce em todo o lado, até do alcatrão).

Depois bebe-se uma Cuca



E tudo fica resolvido.

E então percebe-se porque é que os carros avariados e escavacados são rebocados por qualquer outro calhambeque com uma guita. Por que é que os semáforos são tão inúteis (mesmo que estivessem a funcionar). Por que é que sentido proibido não faz sentido.

Fomos ao supermercado (ao Maxi - é industrial)

"Não temos leite - já acabou"

E encolhemos os ombros porque pode ser que amanhã tenhamos mais sorte. E tivemos. Sem maka.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Cheguei

Mamã, Papá,

Cheguei a Luanda, dia 14 de Janeiro, às 21h30, hora local.

O vôo correu bem, o atraso não foi catastrófico e ainda tive direito a mais dois pacotinhos de bolachas de água e sal (porque os que serviram ao almoço a acompanhar o frango com puré não me chegaram)gentilmente cedidas pelo simpático comissário de bordo que andava a servir as bebidas.

A mim, serviu-me sumo de tomate com gelo, pimeta e sal, hábito que adquiri na viagem que fiz a Munique na companhia da minha querida amiga Sandra M.. O curioso é que em terra não tem metade da graça.

À chegada tinha à minha espera o Sr. Mendonça, o motorista. Boa gente, o Sr. Mendonça.
"- Desculpe o atraso..."
"- A malta percebe...!"

O ar quente entrou lentamente pelas narinas e levou o seu tempo a chegar aos pulmões. Foi aí que percebi que já não estava em casa.

Até amanhã e um xi-coração.

Disclaimer

Caro leitor,

Este blogue não tem nada a ver com queijos (ou com qualquer outro derivado do leite), nem sequer com a minha opinião pessoal sobre os mesmos (e partilhada por tão poucos).

Lamento profundamente o equívoco, especialmente se pertence a esta elite de pessoas que, como eu, não consegue estar a menos de 50 metros de um patético camembert ou de um infeliz queijo de ovelha.

A verdade é que o nome previsto para este blogue foi já locupletado por outro cibernauta, pelo que optei por um título que tem de tão pouco revelador sobre a minha pessoa, quanto de verdadeiro.

O leitor está, no entanto, convidado para continuar a lê-lo.

Feita esta pequena nota,

Bem haja!