De há uns meses a esta parte voltei a frequentar o maravilhoso mundo dos transportes públicos. Diariamente percorro a magnífica cidade de Lisboa, de lés a lés and back, saltitando entre a Carris, a CP e o Metro.
É uma verdadeira aventura. Uma inspiração para o próximo filme de Indiana Jones. Ou para a série "The Walking Dead". Algo intermédio.
Há todo um ritual que precede o início da minha odisseia diária. Saio de casa com o passe em punho (viva o L1!), MP4 numa mão e cigarro na outra, e assim me entretenho durante a espera.
Eis que se avista a lagarta laranja e eu já pronta para esfregar o meu L1 numa das maquinetas estrategicamente mal colocadas à entrada do autocarro. Ainda estou para perceber porque raios colocam uma das maquinetas à frente do motorista e outra atrás, se só consegue entrar uma pessoa de cada vez. Resultado: quem é mais lento no procedimento do esfrega-o-passe, ou quem não o tem e precisa de comprar bilhete, acaba esmagado à frente do motorista pelas pessoas que avidamente procuram a maquineta colocada da parte de trás, para poderem "validar" o respectivo "título" de transporte.
Mas não se pode esfregar de qualquer maneira, não senhor: tem que ser delicada e pausadamente, qual maestro em dia de sinfonia, para que o sensível aparelho possa ler a informação magnética contida no colorido cartãozinho. Caso contrário leva-se com um desagradável piiii.
No autocarro vai-se em pé, que o tempo do percurso não justifica ir sentado. Também não me agarro a lado nenhum, que já treinei o equilíbrio. Imagino-me sempre em cima de uma prancha de surf a apanhar a onda da minha vida. Um dia que vá fazer uma aula, vão chamar-me um prodígio.
Chegada à paragem de destino, salto para a rua, em direcção à estação de comboio. Com isto já lá vão 10-15 minutos e 5 músicas ouvidas. Valha-me a minha diversificada playlist.
Uma vez mais, esfrego cuidadosamente o passe nas portinhas automáticas para a entrada na plataforma. Em hora de ponta, os comboios passam, em média, de seis em seis minutos. Todas as carruagens vão apinhadas, cheias de cheiro de gente semi-sonâmbula, ensimesmadas com os seus livros, jornais, headphones ou a olhar para o vazio bocejante.
É nessa altura que tento atingir uma janela com um olho e acerto num bocadinho do Tejo. Tudo o resto pode ser horrífico, mas aquele vislumbre é um privilégio. Espero que, ao menos durante uns breves milésimos de segundo, toda aquela gente consiga apreciar esse encanto.
Chegada ao meu destino, sigo no meio da carneirada para o metropolitano. Não sei se todos me seguem ou se sou eu que estou a seguir toda a gente. Prefiro nem pensar muito nisso. Nessa altura já passaram mais 20 minutos e a minha cabeça viaja na música que vou ouvindo, nas melodias e nas histórias cantadas que já sei de cor. Quando passa o "Englishman in New York" do Sting imagino-me de bengala a percorrer as ruas de Manhattan. A gentleman should walk but never run.
Esfrega-o-passe uma vez, desço dois lances de escadas, esfrega-o-passe outra vez. Alguns passageiros mais inexperientes, que ainda não dominam a técnica, estão que tempos a friccionar nervosamente o visor da portinhola, que nem assim se convence. E entretanto dezenas de pessoas acumulam-se em fila.
Malta: não friccionem. Não resulta. Aproximem o passe do visor, delicadamente como se fosse a última carta de um castelo de cartas. E voilà! Abrem-se as portinholas.
Malta: não friccionem. Não resulta. Aproximem o passe do visor, delicadamente como se fosse a última carta de um castelo de cartas. E voilà! Abrem-se as portinholas.
Regra geral, quando estou a chegar à plataforma do metro, acabou de arrancar um. Louvado será o dia em que comboio e metro se coordenam nos horários, facilitando a vida às dezenas de passageiros que utilizam essa ligação e, como eu, pagam cerca de 50€ de passe (ou mais) por ambos os meios de transporte. Melhor ainda seria aumentar a frequência dos mesmos. 4 minutos em hora de ponta é muito tempo. Especialmente para quem já vai com meia hora de viagem.
Chegado o comboio subterrâneo as gentes amontoam-se para tentar entrar primeiro, não vá o mono eléctrico fugir. Tanto calor humano. Tanto fedor urbano. Cotoveladas, cargas de ombro, pisadelas e encontrões. Entro no jogo para sobreviver e fixo-me num único objectivo: um lugar sentado. Parecemos zombies on speeds avistando carne fresca.
Volta e meia, na linha verde, entram os suspeitos do costume a pedir uma moedinha. São sempre os mesmos. Um deles - julgo que o mais popular - canta uma música meio hip-hop acompanhada por ritmos alucinantes feitos com a sua bengala e uma espécie baqueta que usa para contra-ritmo.
"Aaaa-gradece-se a quem tenha a bondade de m'auxiliareee".
Mudar de linha. Subir escadas. Mais carneirada. Mais música. Escadas rolantes avariadas (nunca as vi a funcionar). Cheiro a pão quente. Mais quatro minutos. Mais música. "Air Batucada" dos Thievery Corporation.
"(...) E eis que súbito o avisto fulgurante, na sua pompa e aérea formosura (...)", não o Palácio encantado da Ventura (obrigada Antero) mas a saída para o meu destino final.
Uma hora de viagem.
Venham agora falar-me de greves.