É uma presunção chamar-lhe Ode mas hoje não estou para grandes modéstias.
Já muitos deverão ter tido o prazer de ir beber um copo ao Bairro Alto. Poucos terão saboreado o fenómeno da experiência. Aconselho efusivamente, é o entretenimento mais enriquecedor que a vida me tem oferecido. E não é preciso fingir-se intelectual ou beber suminho para manter a argúcia, basta olhar à volta e apreciar, sem opulência nem constrangimento.
Quando se chega ao Camões, em vez da sobriedade conferida à Praça pela digníssima estátua, deparamo-nos com um cenário semelhante ao de um recinto de um qualquer festival de Verão em noite de estreia: magotes de gente, de todas as idades, agrupados como rebanhos, alguns segurando garrafas (de cerveja, vodka ou coca-cola), como se estivessem à espera de qualquer coisa que não estão preocupados que aconteça. E ainda são nove da noite.
Sobe-se a Rua das Gáveas, vira-se à esquerda, vira-se à direita, encontram-se os amigos, dá-se à perna mais uns metros e, já entre risadas perdidas no labirinto calcetado, entra-se num tasco qualquer para comer um bitoque com ovo a cavalo ou meia de jaquinzinhos com arroz de tomate malandro. Se formos de finuras, entra-se num restaurant aperaltado, à escolha em cada esquina, e experimenta-se (porque as doses, na maioria das vezes, só dão para experimentar) um magret de pato ou um entrecôte de novilho ou um souflé de camarão ou outra coisa qualquer, que apesar de sempre deliciosa, não consigo pronunciar (nunca fui grande coisa a francês). Às vezes também gosto de comer sofisticadamente, até porque desde criança que a minha Mãe me ensinou a usar todos os talheres, a colocar o guardanapo no colo e a limpar a boca depois de pousar o garfo e antes de beber (as vergonhas que isso já me poupou), mas ultimamente não tenho tido tempo. Não faz mal, não morro à fome por isso. Venha o bitoque.
Depois do repasto, seguimos em fileira entre o maranhal de gente que entretanto se acumulou nas ruas apertadas até à porta do bar do costume, que fica na esquina mais acima. Passa-se pela ginginha? Talvez não, que a ginginha zangou-se há uns tempos com o meu estômago e ainda não fizeram as pazes.
Até pode estar friozito (ou mesmo aquela chuvinha molha-parvos) que ninguém arreda pé do Bairro até fecharem todos os bares. Não consigo perceber porquê. Nem os meus Pais.
"Mas afinal o que é que vocês fazem enquanto lá estão?"
"Conversamos."
Desconfiam. Insistem.
"Mas na rua, em pé? Ouvem música? Dançam?"
"Não, estamos na rua a conversar."
E dão-se por vencidos, mas não convencidos.
A verdade é que aquele ambiente é magnético e vivificante. Correndo o risco de ser pirosa, sente-se uma espécie de calor humano e de proximidade com perfeitos desconhecidos, talvez para suprir a distância criada com as pessoas que trabalham connosco ou que vivem connosco. Solidariedade na distância.
Mas de facto, a única coisa que fazemos durante todas aquelas intermináveis horas, é conversar em pé na rua. Não há qualquer segredo, nada de obscuro se passa. Naturalmente que há por lá algumas discotecas, para onde se pode ir dançar e outras coisas parecidas, mas (para mim) isso já teve o seu tempo. O que eu gosto é de dizer disparates no meio da rua, entre amigos, soltar umas gargalhadas e exorcizar a semana de trabalho. Também se fala de coisas sérias - política, religião, crítica cinematográfica ou literária, viagens, concertos, músicas e episódios da vida. O que não pode faltar é o copo na mão. Bebe-se devagar, saboreia-se, beberica-se, mexe-se o gelo e quando se vê o fundo ao copo decide-se se há tempo para mais um.
Não sei como é que aguento estar tantas horas em pé, mas a verdade é que nem me dou conta do tempo a passar (excepto se levar saltos altos - erro que jurei nunca mais cometer). E estou certa que as centenas de pessoas que ecleticamente bebericam à minha volta também não estão preocupadas com o assunto.
Uns vêm beber uma imperial com os amigos. Outros bebem caipirinha (ou morangoska, que agora está na moda) para se esquecerem dos problemas da semana. Outros pedem um gin tónico para preparar o resto da noite. Os mais empeneirados (ou com um estômago mais sensível) bebem vinho a copo. No Inverno é o que sabe melhor.
"Qué flô?"
Também nunca falha. Às vezes, só pelo gozo, ofereço 1 euro pelo molho inteiro. Que me perdoem os senhores, mas não resisto. Então quando me espetam com aneizinhos a piscar e bonequinhos que guincham à parva, não escapam.
Chega a hora de abalar. Se ainda for cedo (uma da manhã) espera-me um demorado percurso, entre ombros, pisadelas, copos pelo ar e fumo de tabaco, até me libertar do labirinto de gente. É como se fosse uma dança - encolho a barriga ali, dou um saltinho acolá, desvio o ombro da cara de alguém e, como se fosse bailarina de dança moderna, chego ilesa ao destino.
Betos, góticos, alternativos, metaleiros, hippies, snobs, yuppies, executivos e outros sem estereotipo socialmente qualificado. Turistas de saltos altos assediadas pela calçada portuguesa. Cinquentões em busca do amor. Tipos encostados à parede por não terem chegado a tempo à casa de banho. Miúdos a pensar que já têm idade para isto. Casais enamorados a partilhar uma tosta (ou uma bola de berlim com creme). Estamos todos ali. Não nos conhecemos, não nos compreendemos, não nos aceitamos. Mas estamos todos ali, a fazer exactamente o mesmo, à porta dos mesmos bares, das mesmas casas de fado, a ouvir ao longe a mesma música dos anos 60, 70, 80, 90 e qualquer-coisa-enta, ritmos latinos, jazz, sons africanos (ou africanizados), batuques indecifráveis.
Cruzo-me com todo o tipo de pessoas, passo por todo o tipo de bares, ouço todo o tipo de música. A Babilónia à noite devia ser assim.
Com sorte, já estão a cozer pão com chouriço na Rua da Rosa. Já agora levo uns croissants para o pequeno almoço.